terça-feira, 6 de novembro de 2012

Xokleng: lendas, segredos, mistérios

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 Xokleng: lendas, segredos, mistérios




Completo 1 ano de Urubici. Como percebi que muitas lendas povoam o imaginário das pessoas por aqui, arrisquei-me também a criar algumas versões. Usei como mote o ponto de vista de um Xokleng.

A beleza natural de Urubici não teria a magia que tem, não fosse a hospitalidade do povo desta terra.

Espero que gostem.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Alucinações














A porta ringiu no meio da noite. O cansaço físico pode provocar ilusões mentais, e aquele dia tinha sido realmente estressante. Havia muito tempo que as alucinações já se foram, sinta-se curado. “Mil diabos, era impossível tudo estar acontecendo de novo”. Estava enganado. O prédio todo foi sugado e rodopiou como um parafuso girando ao contrário, sacado em alta velocidade.

Soterrado em meio aos escombros, ainda respirava.  “Mil diabos, tirem-me daqui!”, é o que disse com toda a força. Pessoas circulavam chorando e juntando o que restara de seus pertences. Uma menina, não mais de 5 anos, avistou seu brinquedo. “Mãe, veja, é o meu ursinho. Está sem cabeça”. Dois estranhos pilham o que podem e somem do local. “É o que era para ser, minha filha, mas Deus é grande!”.

Olhou ao redor, tudo não fazia nenhum sentido. Aquela senhora havia dedicado a vida para erguer sua casa, e em segundos virou nada. É estranho. Não faz o menor sentido. “Mil diabos, para algumas pessoas isso é motivo para ter ainda mais fé. Achei que tivesse curado das minhas alucinações”. Tropeçou em algo. Era um de seus velhos livros, destroçado. Juntou-o, e mais alguns outros que foi encontrando. Carregava o que podia em seus braços. Dilacerados. Andou um pouco. Deteve-se, subitamente. “Para o diabo com tudo isso”, jogou-os fora.

Estranhos continuavam saqueando as coisas importantes. No final, quando as sombras chegaram naquele monte de escombros, lixo é o que restara.

Alugou um porão escuro e úmido. Era o que alcançava seu dinheiro. “Por mil demônios, trancarei todas as portas. Nenhuma haverá de ringir no meio da noite”.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Um capricho esquecido





Havia já algum tempo em que seu status era cachorro de rua, mas nem sempre foi assim. Era um dia qualquer como tantos outros, sentia fome, frio, e gritavam em sua silhueta as marcas de abandono. Latiu, quando divisou alguém, naquela tarde de inverno. Até seu latido era triste, fraco, sumido, como que um pedido de socorro. Um pedido de socorro assim sem convicção, sem esperança, talvez por estar escaldado de tantos maus-tratos. Não esperava mais nada que não fosse piedade e indiferença. Uma vida retorcida levava.

É possível que ainda se lembrasse do dia em que fora comprado, e do tempo em que fora tão bem tratado e paparicado, até ter sido deixado de lado e depois jogado ao relento. Abandonado assim como um velho brinquedo trocado por outro qualquer, ou por um capricho que agora não importava mais. Fora comercializado como objeto, e como objeto fora abandonado.

II

No princípio, o filhote em tudo lhes parecia tão meigo. O apartamento respirava vida, e o animalzinho ganhou um lar. Era primavera qualquer que fosse a estação. Passear no parque, interagir com outros da espécie, tudo era motivo de festa, até o seu jeitinho especial de enrolar-se ao dormir. Mais do que um companheiro fiel, que balançava seu rabinho de satisfação, era um ente da casa.

Acostumou-se, por certo, com aquele carinho. Sua amizade com seus donos brotava ao natural, sem esforço, e sem nada exigir em troca. Apegou-se não só às pessoas, mas ao conforto, à comida, à higiene. Diferente de um celular que pode ser substituído  por outro com tecnologia superior, aquele animal é dotado de vida, e tende a envelhecer e demandar cuidados.

O fato é que se cansaram do brinquedo, e aquilo que era fonte de prazer tornou-se um incômodo. O que deveria passar pela cabeça do bicho desprezado? Se mais fiel do que fora não era possível ser. Se mais amigo do que fora não havia como ser.  Se, apesar de tudo, ainda correria ao encontro de seus donos, com o rabo abanando, se acaso os avistasse.

Não saberia dizer o que poderia estar pensando o infeliz cachorro, mas seu latido triste há de ser uma grande pista e servir para algum propósito. Aliás, não era um latido, era um melancólico soluço.


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Sem asas para voar

   Tal como um vale circundado por uma cadeia de montanhas, suas aspirações tinham um horizonte limitado. Não pensava em outra coisa senão na monotonia de seus dias. Acreditava que um dia algo inesperado poderia acontecer, e sua vida, até então triste, poderia ser melhor. Enquanto isso, tudo seguia igual.

   Seus desejos, ainda que voos rasantes, sempre reprimidos pela protetora educação, foram sufocados durante seu desenvolvimento. Nunca teve a experiência de um joelho esfolado. Não culpava seus pais, porque aprendera a ser um bom filho.

   Uma semana havia passado após o funeral de sua mãe. A consternação mais aguda ia se desvanecendo. Era inevitável o reencontro consigo mesmo. Sempre havia deixado as decisões de sua vida a cargo de seu pai, depois que se foi, de sua mãe, mas agora os dois já se foram.

   Nunca quis aventurar-se, em sua juventude, nas incertezas do amor. Olhava para trás, agora, na solidão de seus dias.

   Sua casa um tanto retirada da cidade não deixava de ser uma casa urbana. O tráfego intenso na rodovia à frente só acalmava na madrugada. Durante a tarde daquele sol de primavera, abriu-se a janela para a possibilidade de uma virada em sua vida.

II


   Sentou-se na velha cadeira de balanço e deixou-se vagar pelas sombras do passado. Sentia que faltava à sua história um enredo. Um pouco de aventura, agora refletia, teria dado um outro sabor, e quem sabe algum sentido aos seus dias.

   Alice, sua vizinha, que o viu crescer, mas estivera ausente por muito tempo, retornara à casa de seus pais, e agora, vendo-o nessa melancolia, reavivou como num sopro, o tempo em que Aldo habitara secretamente seu coração.

   Não era mais jovem, mas conservava qualquer coisa de frescor que só as mulheres maduras sabem ter, a sensualidade lhe caía natural, como que fazendo parte do andar, do olhar, da maneira graciosa de portar-se, e até mesmo, do modo de dizer “olá, Aldo, há quanto tempo?”

   Aldo respirava a Alice. Nutria-se dela, desejava-a e com ela sonhava todas as noites. Seu coração morreu pela primeira vez, quando a viu partir naquele dia distante, tão bela, tão especial, inalcançável. Porém, nunca decidiu-se por ela. Mas o que poderia ele fazer? E se ela não o amasse? E se alguma coisa desse errado? E se não fosse bem isso o que ele queria? Assim, enquanto se afundava em incertezas, foi-se aquele mês, o seguinte, a estação e outras estações. Até mesmo os pássaros precisam de muitas quedas até poderem alçar o voo para a liberdade. Aldo nunca teve um joelho esfolado.

   A vida passa assim como passa o lento entardecer de um dia de sol, num faiscar. Alice não esperou, a vida não espera. Enquanto Aldo, olhando o ruidoso trânsito lá fora, preso em seu casulo, enterrado em sua velha cadeira de balanço, imune a riscos, pois dessa forma fora criado, aguarda algo inesperado acontecer, sem que para isso em nada contribua.

   Quando os sonhos se esvaem, é o derradeiro sinal que a alma já se fora dessa vida, e nada mais existe. Ainda assim, em seu íntimo, Aldo ficava aguardando algo inesperado acontecer.


Os efeitos milagrosos da salsinha





   Não virei naturalista extremado, nem aderi a uma religião tresloucada, tampouco estou batendo pino, ainda.   Mas o que vou lhe dizer é verdadeiramente um achado. Não me julgue antes de ler até o final, dê-me uma chance.  

  Infestam na internet poções estranhas, se seguidas à risca, prometem verdadeiros milagres. É tanta a modéstia de seus autores que jamais assinam tais receitas. Circulam como de domínio público, apócrifas e anônimas, entupindo as caixas de e-mails.    

    Ninguém nunca falou das salsinhas e seus incríveis efeitos milagrosos. Talvez por que não existam. Mas espere.   

   O segredo é o seguinte, em todas as refeições sempre inclua pelo menos 1 raminho de salsinha, e logo você terá os primeiros e surpreendentes resultados, além daquele tom esverdeado de seus excrementos. Seu rosto pálido dará lugar a uma face dourada, seus cabelos secos e quebradiços logo serão macios e esvoaçantes. Mas você ainda não viu nada. Prossiga com o tratamento da salsinha que logo verá o grande milagre. Se sua longevidade apontava para os 69 anos, e seu grande sonho de uma viagem ao Caribe já não daria mais tempo, veja o que vai acontecer. Um chinês, um russo e um caribenho tiveram a longevidade acrescida em 5 anos, após terem feito o tratamento com salsinha. Viu? Agora você fará com sobra de tempo sua grande viagem e terá realizado o seu grande sonho. Não é um efeito milagroso? Pois não disse.   

   Não queira testar essa experiência em casa, não vai funcionar. Mas se for acometido por uma tentação irresitível para provar os efeitos milagrosos da salsinha, não vá dizer depois que não lhe avisei. E, antes de imprimir ou repassar, pense em seu compromisso com a sustentabilidade. Vida Longa!  Ah, ah.

terça-feira, 17 de julho de 2012

A lenda do Morro da Cruz

A lenda do Morro da Cruz








Diz uma antiga lenda que...

   Debate-se ainda se a civilização Xokleng não seria uma ramificação da Kaingang. Nunca saberemos ao certo.

   O viçoso verde da vegetação anunciava o início da primavera. Uma jovem índia Xokleng e um moço guerreiro Kaingang, naquele início de estação, selariam o encontro dos dois grande povos indígenas do hemisfério sul. Se eram rivais ou não, pouca importava para os sentimentos dos jovens.

   O encontro ocorreu por acaso. A Xokleng distanciou-se da tribo. Sua percepção feminina parece que a empurra ao encontro.

   Nômades, quis o acaso que as civilizações se cruzassem nas imediações das suntuosas rochas, às margens do Rio Canoas. Por um capricho da natureza, há um grande vão na rocha mãe, como se fosse uma janela para contemplação do magnífico vale, cortado e banhado pelo límpido rio.

   Laklãnõ, a indiazinha Xokleng, banhava-se nas cristalinas águas do rio. Seu corpo nu boiava sobre as águas com tal harmonia que era como se fizesse parte delas. Absorta, nem percebeu que, oculto nas moitas, os negros olhos de Jê, o indiozinho Kaingang, pousavam curiosos sobre seu corpo. Quando mergulhou, mantendo os olhos abertos, sentiu a presença de Jê, mas manteve-se brincando em meio às ondas, sabendo que era observada. No entanto, também Jê percebeu que fora visto, mas continuou se esgueirando por entre os galhos.

   Horas correram nessa cumplicidade. Qualquer coisa de inexplicável atraiu os adolescentes um para o outro. Como uma sereia que surge das águas, Laklãnõ leventou-se e andou em direção ao admirador, como que encantado. As palavras proferidas em línguas diferentes não tinham qualquer importância, pois a universal linguagem da paixão fascinava mutuamente os jovens. Pouco disseram um ao outro, diferente de seus olhos que falavam mil palavras.

   Combinaram um sinal para os próximos encontros. Seria aos pés do vão da grande rocha, no topo da montanha.

   Diz uma velha lenda indígena que a melodia de uma flauta é a marca da alma daquele que a toca. Assim como cada ser é único, não existem dois cantos iguais. Por isso, ficou acertado que Laklãnõ tocaria sua flauta no local do encontro. A sensibilidade de Jê, por certo, a reconheceria.

   Dois traços paralelos, coloridos, em cada lado do rosto, um cinto de cipó com penas na parte frontal, uma flauta de bambu a mão, mais parecia uma deusa grega; era Laklãnõ, a indiazinha Xokleng. Na cabeça, um cocar de penas de arara, às costas um arco, no rosto, traços duplos verticais em cada face, na cintura, um cordão com penas cobrindo seu sexo; era Jê, o indiozinho Kaingang.

   Foi a primeira vez para ambos. Era o entrelaçamento do sangue de duas nações, no espaço oco da grande rocha, naquele sublime momento. Pelo resto dos tempos, antropólogos e outros pesquisadores, tentariam desvendar a origem dos descendentes de Jê e Laklãnõ.

   Pela lei do nomadismo, ninguém há de criar raízes. Tudo que deixavam eram rastros. A natureza, intacta, regozijava-se com os hóspedes. Não teriam, natureza e indígenas, a mesma sorte, tempos depois. Estes, dizimados; aquela, marcada por sulcos grotescos em suas veias. De modo que logo seguiram seu rumo. Jê desgarrou-se e seguiu as pegadas da tribo de Laklãnõ, que partiu para caminhos incertos.

   Antes, porém, o jovem guerreiro Kaingang, para deixar registrado o mágico momento que passou com Laklãnõ, prendeu um sinal no meio do vão da grande pedra.

   Tempos depois, habitantes daquela região, percebendo a semelhança do sinal com uma cruz, nominaram para aquele local Morro da Cruz.

   Você, visitante, quando pisar o lendário Morro da Cruz, não deixe de olhar pela janela, no vão da grande pedra, a beleza do vale, do rio e do verde viçoso. Se conseguir entrar em estado alfa -  concentre-se, quiçá consiga  - ouvirá a sinfonia única de Laklãnõ, a indiazinha Xokleng, soprando sua flauta. E então, faça como aquele povo: "deixe somente pegadas e nada leve senão lembranças"1.



1. Reescrita do slogan criado por adeptos de vivências naturais: “da natureza nada se tira a não ser fotos, nada se leva senão lembranças, nada se deixa senão pegadas, nada se mata senão o tempo”.














Flauta indígena de bambu.



Como chegar: Localidade Campestre, 1380m de altitude, às margens do Rio Canoas, Urubici, Serra Catarinense.





quinta-feira, 7 de junho de 2012

De olhos bem fechados


 
           As sombras das ruas centrais, bem cuidadas, escondem alguns bairros esquecidos; lá a vida também acontece, mas de outra forma.

          Uma névoa gelada projeta-se das montanhas, faz com que homens ponham suas mãos nos bolsos e mulheres enrolem-se graciosamente em seus cachecóis. É um gélido anoitecer de um rigoroso inverno.

          Autoridades reunem-se numa suntuosa sala oval para traçar estratégias. O inverno faz bem para essa classe. Os modelitos da estação deixam as pessoas elegantes. Um ambiente chique e pessoas interessantes. E lá fora, o frio. O foco são as pessoas marginalizadas. Algumas teorias bem articuladas são expostas com brilhantismo. Falas elevam o ego dos oradores, embora em nada de concreto resultará. Não é o foco. Há bairros periféricos esquecidos entre o discurso e a realidade. Cai ainda mais a temperatura, deve ter rompido a barreira do zero grau. 

         Depois do evento, doam algumas roupas quentes à campanha do agasalho. Convencidos de que cada um fez a sua parte para um mundo melhor, confraternizam-se de verdade. 

        Um circo chegou à cidade. Para adultos, somente dez reais; para crianças, até os dez anos, cinco reais, anunciam as chamadas publicitárias.

     Por coincidência, entramos na temporada eleitoral. É o espetáculo da democracia. Um artista, em movimentos rápidos, faz sumir uma moeda. O trapezista se equilibra nas alturas. O palhaço, irreverente, mostra a bunda. 

        De olhos bem fechados, aplaudimos.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Dança de rua

 

     Recebeu o recado com certo ceticismo. Não era a primeira vez que estava sendo lembrado para participar desses projetos. Já duvidava que desse em alguma coisa. Uma vez, por falta de recursos; outra vez, por falta de profissionais; e agora, qual seria a desculpa? Ainda assim, queria acreditar que desta feita tudo seria diferente. Não comentou tais pensamentos com a moça que lhe passou a notícia. 

     Um vento de esperança soprava em seu rosto. Fora escolhido para participar de um curso de dança, street dance1, programa social para promoção da cidadania. Constava da relação de adolescentes em situação de risco. Embora a razão que lhe fora apresentada, por ocasião  do convite, não mencionasse tal fato. Tinha então 15 anos.

     
     No mesmo dia em que se preparava para a primeira aula, seu irmão, dois anos mais velho, tinha sido flagrado consumindo crack. Partiam então para caminhos opostos: Tiago, subindo os degraus daquela escada que o levaria à primeira aula; Lucas, conduzido para um estabelecimento educacional com liberdade restrita.

     Tiago olhou pela última vez as feições de seu irmão. Viu seu olhar perdido, inexpressivo, sem aquele brilho de outrora. Um sinal o fez estremecer, era como se pressentisse que nunca mais tornaria a vê-lo.



     A teoria da proteção integral2 fazia-se real no horizonte de Tiago. Começava desabrochar seu talento para a dança. Agarrou-se a esse fio de luz que atravessou seu caminho. Desde as primeiras aulas, sentia-se no paraíso, dançava com leveza. Dedicava-se inteiramente, progredia.


     Nunca chegou a ficar sabendo, mas seu irmão, ainda nos primeiros dias, evadiu-se da entidade em que fora internado, tendo tomado rumo incerto.


     Lucas. na verdade, fugiu da entidade e voltou a consumir crack. Não tinha mais domínio sobre si mesmo, a dependência química estava corroendo aceleradamente o que ainda restava daquele menino tão jovem. 

     O talento de Tiago para os passos da street dance ficou logo demostrado, desde o princípio. Somando-se sua dedicação e determinação, logo estaria na condição de auxiliar do mestre.
    

    Algum tempo depois, Tiago seria laureado como aluno destaque do projeto de inclusão social. Propostas não faltaram para que iniciasse sua carreira de professor de dança de rua. Deu-se bem Tiago. Soube aproveitar a rara oportunidade que um dia cruzou seu caminho.
     

     Seu irmão, Lucas, não teria a mesma sorte. Gostava de violão, e até tinha aprendido alguma coisa em casa de amigos. Mas, em vez de um projeto aos moldes daquele do seu irmão, a droga chegou primeiro e destruiu não apenas seu talento, mas sua vida.
     

     No exato instante em que Tiago abria uma Conferência dos Direitos da Criança e do Adolescente fazendo aquilo que tanto amava, Lucas estava sendo transportado por uma ambulância. Numa perseguição implacável entre traficantes de grupos rivais, fora atingido em cheio por um carro que vinha em direção contrária. Era o seu fim.





1. A dança de rua ou street dance remonta à Grande Depressão de 1930. Artistas desempregados passaram a praticar na rua a sua arte. Nascia, então, um novo estilo de dança que se espalharia pelo mundo, chegando ao Brasil por volta dos anos 70. Fonte: http://www.movimentolivre.com.br/street-dance

2. A teoria da proteção integral fundamenta-se, precipuamente, no artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil, no Estatudo da Criança e do Adolescente, na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e nas convenções internacionais de proteção aos direitos humanos.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Amor sem fim

     

 









   
     Casou muito nova e teve vários filhos. Enamorou-se aos 16 anos com aquele que seria o único e eterno amor de sua vida. Viveu para o marido e para os filhos. É possível que nem soubesse, e talvez ainda nem saiba, que poderia ter tido uma vida própria, e ainda assim eles teriam vivido da mesma forma. 

     As sombras, os risos, as algazarras, do tempo em que sua casa era habitada por todos, persistem em suas reminiscências. Tudo parece vazio agora. Os filhos seguiram cada um o seu caminho. No entanto, não se sente só. Sabe perfeitamente que não viveu em vão. Viveu para amar e proteger sua prole. Mesmo agora, tempos depois da partida de seu amor, ainda vive para ele, visitando-o periodicamente naquela sua última morada.

     Tudo em quanto acreditava foi submetido à prova. Passou por momentos difíceis. Nunca imaginou que teria tanta força. Não sabia de onde teria vindo a energia que não se exauria, e assim pode enfrentar, durante mais de dez anos, a enfermidade, que foi levando aos poucos o seu eterno namorado.

     Foi nesse longo período que viveu mais intensamente o amor. Jamais arredou o pé. Todas as suas atenções estavam voltadas para seu homem, agora enfermo. Só mesmo ela ainda conseguia ver por detrás de sua face, outrora tão vivaz, agora quase inexpressiva, a essência do rapaz que roubou seu coração. Abandonou por completo qualquer atividade pessoal que não tivesse ligação com os cuidados ao seu doente.

     A morte pode ter diminuído seu sofrimento, mas jamais abalou seu amor e suas convicções. Dedicou-se até o fim. Amou até o último suspiro. E seu amor, tanto tempo depois que ele já se fora, em nada mudou.

   Jogou fora as rosas já murchas, trocou a água do vaso, colocou novas flores de campo. Conversou mentalmente alguma coisa. Sussurrou um “até logo”, fez o sinal da cruz costumeiro e, então, como por encanto, sentiu uma leve carícia do vento em seu rosto. Olhou uma vez mais para trás e voltou para casa. Nunca se sentirá só.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A chuva

Não há distância que possa separar dois corações que se amam.

Uma tímida chuva vai dissipando os piores cenários que se avizinham.

Cai suavemente, molha o desprevenido pedestre, que se projeta em busca de abrigo.

Cai dos céus e eleva as já arqueadas plantinhas.

A chuva que agora cai tem o mesmo significado do calor que sinto,

quando encontro você.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Dançando nas nuvens



   Finalizou o barbear e deu o último açoite no cabelo. Bebericaram o esquento. Virgínia retocou seu batom e mirou-se de soslaio no espelho. Deram-se as mãos e dirigiram-se à arena. A magia de uma noite de dança começa muito antes do primeiro passo no tablado de um certo salão. É milenar a crença que o magnetismo está no ritual. 

   Um brinde, um olhar, e a música. Um convite e segue-se a primeira dança daquela noite. Pernas se cruzam, corpos se tocam, um casal flutua no salão. 

   Em avanços e recuos, ora ligeiros, ora lentos, os bailarinos serpenteiam ao embalo das canções. Aquele momento não haverá de acabar. Há no ar um leve cheiro de êxtase. O casal baila como se estivesse sozinho no mundo. É a magia dos rituais de uma dança. 

   A noite avança pela madrugada e em algum lugar ficaram os dissabores. Remotas e recentes composições embalam o ritmo dos dançarinos. Como se estivessem fundidos, deslizam em movimentos livres e sincronizados. 

   A sessão caminha para o final. Juntam-se as mãos e dirigem-se à saída. A noite está só começando, tem pela frente a cereja do bolo. Naquele fragmento de tempo, viveram e dançaram nas nuvens.



quinta-feira, 10 de maio de 2012

Um homem para chamar de pai



   Os nomes verdadeiros foram preservados. Um senhor viúvo, com certa distinção social, tanto pelas posses quanto pela retidão de caráter (talvez mais pelas posses), tinha 5 filhos. 

   Era hora do engraxate passar em sua casa. Já tinha separado suas botas para dar serviço ao menino. Era um dia frio e úmido. Só mesmo o calor do fogão a lenha poderia manter aquecidos seus aposentos. (Há frios que o calor do crepitar do fogo não aquece). Uma casa confortável, nas proximidades da cidade. A ausência de sua senhora podia se notar em várias dimensões: nas janelas da casa ainda fechadas, nos olhares perdidos e tristes de Tomás, o viúvo. Em cada pequeno detalhe poderia se perceber que ali faltava o dedo de Luíza. Toda a energia que fazia aquela casa estar em ordem fora tirada sem autorização. Assim são as coisas da vida, tentava se conformar Tomás. Para que tudo isso, perguntava-se, o que é a vida, afinal? O que teria sido feito do duro Tomás, rígido, determinado, audacioso, faceiro? Tomás perdera o rumo, fraquejava. Estava velho demais, cansado demais para superar a perda de sua senhora. Chegou o engraxate.

   Olhou aquele menino. Lustrava suas botas. Conhecia um pouco da história de Jair. Morava de favor aqui e ali em locais incertos. Movido pelo sentimento humanitário, que a perda não havia abalado, resolveu acolher Jair. Daria um lar, um futuro, em pratos que comem 5 podem comer 6, pensou.

   Não avaliou bem semelhante decisão. Seus filhos se revoltaram. Mais tarde entendeira o motivo pelo qual opuseram tanta resistência. Tempos depois, sentindo-se debilitado, decidiu fazer a partilha de seu patrimônio. Ficaria com o suficiente para seu sustento e dividiria o restante. Apesar da oposição contundente dos irmãos, a Jair coube parte igual. 

   Cada filho tomou seu quinhão e partiu para longe. Exceto Jair, que ficara ao lado do pai. Então Tomás passou a relatar sua vida ao já moço feito, o filho adotivo. A partir de certa idade as pessoas passam a viver do passado, quem o teve. Tornaram-se fieis companheiros. Jair, eternamente reconhecido; Tomás, imensamente grato por ter alguém para dividir seus últimos dias. Nessa relação de pai e filho não havia laços consanguíneos, mas vínculos de carinho, amor e fraternidade, que, como pode perceber Tomás, era o alento que necessitava para seus derradeiros dias.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Deus

   Ex-usuário de drogas, agora palestrante. Relatava os seus piores momentos, fazia uma pausa estratégica e continuava. Já sabia, pelas feições das pessoas, se havia mexido em seus sentimentos. Se observasse traços de piedade, era hora de falar do processo de recuperação. A clínica de internação, a dedicação das pessoas, as recaídas, a rede de almas que lutaram junto com ele para livrá-lo do vício. E prosseguia, o orador, seguro, a transmitir sua saga. Desde os que o encaminharam, até aqueles que viveram todos os momentos, os profissionais, os familiares, os desconhecidos, que sabia, torciam pela sua sorte. Ilustrava com dados, dando ainda mais credibilidade à sua fala, “três em cada cem, dizia, conseguem se recuperar”. Interrompia, por frações, como a dar tempo para as pessoas assimilarem melhor suas palavras. Olhando fixamente para alguém, retomava. “Pouco, se vocês mirarem os 97, mas uma vida salva, pelo menos, teria valido a pena o esforço da corrente de pessoas que se dedicaram”. 

   Por fim, junta suas mãos espalmadas ao peito, ergue seus olhos para o alto, e pronuncia as seguintes palavras: “Deus, devo a Deus a minha salvação e a Ele agradeço”. Encerra sua palestra aos aplausos efusivos dos presentes.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A lenda das sete cachoeiras






Reza a lenda que...


   A filha do grande líder Xokleng, então com 10 anos de idade, de uma tribo que habitava as imediações de um pequeno riacho, era uma indiazinha diferente das outras. 

   Recolhida em sua oca, nem brincava nem fazia as coisas de sua idade. Tristezinha, a pequena indiazinha xokleng preocupava seu pai, o velho cacique.

   Nenhum tratamento com ervas, sugerido por feiticeiras da tribo, teria dado qualquer resultado. Quietinha, em seu canto, passava os dias a pequenina índia. Fazia desenhos em recortes de rochas que eram trazidos pelos guerreiros da aldeia. Inscrições rupestres e, mais tarde, artes em grafite, denominariam os homens brancos, tempos depois. Mas era, na verdade, o único passatempo daquela solitária indiazinha.

   A notícia dessa enfermidade da filha do grande líder se espalhou por tribos vizinhas. Muitos tentaram ajudar, sem nada conseguir. 

   Um dia, uma benzedeira soube da triste sina do velho cacique e sua filha. Partiu em direção à aldeia, sabia que ficava próxima a um pequeno riacho, o qual juntava-se a um grande rio, que corria engolindo os pequenos afluentes, esse grande rio era o rio Canoas. Lá chegando, tomou conhecimento de tudo quanto tinha sido feito, sem que nada tivesse dado resultado. 

  Desconfiou, a benzedeira, que a indiazinha precisava brincar em coisas diferentes daquelas que todos tinham lhe mostrado. 

   Orientou todos os guerreiros daquela tribo a construírem pequenas quedas de água para que a indiazinha brincasse. 

   A criança se sentiu tão feliz com as brincandeiras nas cachoeiras ao longo do riacho, que voltou a sorrir tal quais as meninas de sua idade.

  O grande líder ficou muito agradecido, e, desde então, o riacho das cachoeiras passou a ser conhecido como Rio Sete Quedas.

   Desse acontecimento surgiram os, hoje conhecidos, toboáguas ou tobogãs, escorredores aquáticos, que fazem a felicidade das crianças pelo mundo afora.

   Se você fizer a trilha das cachoeiras, no Rio Sete Quedas, irá perceber que entre uma e outra cachoeira há um perfeito toboágua nas corredeiras do riacho. Caso o encontre, pare por um instante, medite, deixe que a alegria da indiazinha xokleng penetre em sua alma. Você voltará para casa mais feliz. Acredite.


Como chegar: Urubici, SC, Serra Catarinense, 7 km do centro da cidade, às margens do Rio Canoas, sentido Rio Rufino.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

Pinturas em grafite


   Pegou o único objeto que restara daquilo tudo que já tinha entendido que era um sonho: um tosco colar de pedras. Depositou-o no bolso de sua jaqueta de couro preta, e saiu. Anoitecia no downtown. Ele mesclava as línguas, como era de costume entre os aspirantes a boy. Apoiou-se no paredão de concreto que separava a rua do malcheiroso rio. Olhou pela última vez aquele colar que um dia fora a coisa mais valiosa que já tivera. Arremessou-o. As pedras mergulharam nas escuras águas e geraram um sem-número de elipses que se distanciavam simetricamente do epicentro, dando ao gélido e poluído rio uma rara imagem de beleza, provocada pelo presente que ganhara de Rebeca, em seu aniversário de quinze anos. Olhou aquelas ondas que se propagavam em direção à borda, como se viessem ao seu encontro. Abandonou o local. 

   Tempos depois, Eloi entenderia que semelhante atitude em nada resolvera. 

   Havia mudado em vários sentidos. Preocupa-se com a aparência, o corte moderno do cabelo, um perfume da moda. Portava um blackberry branco, no qual navegava com destreza, ora conferindo os recados nas redes sociais, ora travando batalhas medievais, naqueles jogos em tempo real. Poderia ser confundido facilmente com um suburbano. Porém, restavam resquícios daquele menino interiorano. Prestava pequenos favores sem que em tais atitudes pairassem quaisquer segundas intenções. Mas já era um suburbano, mais de corpo do que de alma. 

   Olga, uma ruiva que nada tinha de expansiva. Olhos miúdos que davam à sua face uma expressão de paz e delicadeza. Rosto assimétrico, medidas distantes daquelas que se avizinham ao padrão atual de beleza. Gostava de poesias. Jamais causaria alvoroço em lugares em que fosse vista. Discreta. As qualidades que importam não estão na superfície. Só alguém muito perspicaz poderia penetrar na beleza interior da pequena ruiva de cabelos lambidos. De algum modo, sua presença contrastava com certos ambientes. Olga tinha autonomia. Foi ela quem fez Eloi perceber o belo no trivial, nas pequenas coisas. 

   Quando viu aquele novo colega pela primeira vez, sentiu um estranho palpitar. Sua sensibilidade a movia em direção a Eloi. Tornaram-se amigos. 

   Desde então, formaram um belo casal. Parceiros de todas as horas. Olga, no entanto, percebeu que uma sombra impedia que seu amigo se entregasse para os sentimentos que não mais se encaixavam como simples amizade. Respeitou. Pensou em desistir. Porém, não abandonaria aquela fervorosa paixão contida, sem abrir seu coração como jamais havia feito. 

   Vestiu o seu melhor vestido. Organizou as melhores palavras. Deixou que a brisa daquela noite embalasse suas esperanças. Amou Eloi com todo o amor que tinha para amar. 

   Tentou cicatrizar tudo aquilo. Deixaria que resolvesse seus dilemas, que, como costumava divagar, tinham ficado num lugar distante do passado. Na sua aguçada capacidade de leitura da vida, Olga teria entendido que os conflitos interiores de Eloi não se curariam assim com suas poesias, e, quem sabe, com coisa alguma. 

  Distanciaram-se. O tempo não espera. Ele, entre o passado e o presente. Ela, em seus dias de retiro, lembrou do primeiro bilhete, ainda guardava em sua bolsa. “Olga, hoje estou de folga. Quer sair comigo?” Ao que, brincando, teria respondido: “Eloi, querer eu quero, mas a mãe não deixa”. Foi até um paredão e largou aquele singelo bilhete, que flutuou e logo foi empurrado pelo vento, até banhar-se nas águas escuras daquele rio, que cortava a cidade. 

  Eloi retornou daquela sua viagem ao passado. Imaginou portar sua alforria. Sentaria naquele muro e esperaria Olga. Havia novidades no ar. 

   De fato, cruzaram-se. Foram a um romântico bar, no qual tocavam velhas canções manhosas. Havia preparado o discurso de sua entrega, mas deixaria para dizer-lhe nos primeiros raios do amanhecer. 

  Olga quando o viu, de pronto, começou a falar de coisas, as quais Eloi nem na mais remota possibilidade teria pensado. 

   “Sabe - começou - quando já tinha principiado a escrever as” Memórias de uma ruiva solitária”, um sujeito vindo de uma pequena cidadezinha, fez-me perceber que eu ainda vivia”. Suspirou. “Não sei se já lhe disse - prosseguiu - gosto do tipo rústico, porque nele as emoções estão sempre à flor da pele, não tem a fineza de movimentos, não dissimula sentimentos, diferente de alguns tipos que têm a delicadeza no trato, agem com tamanha desenvoltura que nunca se sabe o que há por detrás de cada gesto, de cada palavra bem empregada”. 

   Continuou então a falar-lhe desse sujeito que a deixou encantada, disse que o tal tinha um sotaque que lhe soava poesia. “Como assim, como assim um sotaque caipira poder soar poesia”, pensava Eloi. 

   Em suas confidências que se arrastaram pela madrugada, Olga segredou a Eloi que por ele sentia grande carinho, via-o como um aprendiz de playboy, mas que, na verdade, não conseguia entender quem realmente ele era. Continuaria a ser sua amiga, se assim o quisesse. 

   Foi uma longa noite, o nascer do sol despontava no horizonte, deixou Olga em sua casa, e caminhou a esmo. Quando percebeu estava no paredão. Em sua extensão, a arte em muros, nas pinturas em grafite, sugeriam um mundo diverso da realidade. Lançou um certo olhar. As mansas e turvas águas tragaram o seu colar, consumiram o singelo bilhete, mas não foram capazes de arrefecer suas lembranças. 

   Chegou em casa. Como era de seu costume, pegou um livro qualquer e abriu ao acaso. Leu o seguinte trecho. 

“E como farei ginástica 
Andarei de bicicleta 
Montarei em burro brabo 
Subirei no pau-de-sebo 
Tomarei banhos de mar! 
E quando estiver cansado 
Deito na beira do rio 
Mando chamar a mãe-d'água 
Pra me contar as histórias 
Que no tempo de eu menino 
Rosa vinha me contar 
Vou-me embora pra Pasárgada”1

   Fechou. Perguntando-se onde estaria a sua Pasárgada, que sempre estivera à procura, adormeceu. 


1. Manuel Bandeira (1886-1968). “Vou-me embora para Pasárgada”.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Suaves lembranças


   Na sua juventude, não teria como saber que deixava para trás pedaço de um mundo infinitamente lindo, e, ao contrário do que imaginava, se um dia voltasse, jamais o encontraria.

  Sonhou um dia partir, uma cidade grande, compraria uma jaqueta de couro e falaria gírias, e um dia, quando retornasse, conquistaria Rebeca, a fugidia menina de olhos castanhos. Esse dia chegou.

   O aperto em seu coração parece lhe avisava. Juntava as últimas coisas, mas já olhava, com um indecifrável sentimento, o inclinado gramado onde brincava nas belas tardes de sua adolescência.

   Deixava os amigos que também tomariam rumos outros, e nada então seria como antes. Em suas inocentes fantasias, a cidadezinha ficaria estagnada a esperá-lo. 

   Rebeca, suave como a noite, sorria. O olhar traiçoeiro de Eloi banhou o corpo inteiro da mocinha, um vestido rendado, uma trança, uma fugaz olhadela para Eloi, que congela, baixa os olhos e logo tenta alcançá-la, mas não mais a vê. Foi-se, correndo para não se sabe onde.

   Nunca, em toda a sua vida, esqueceria esse momento. As tranças esvoaçantes, o olhar fugaz, a suavidade de uma tarde que ficaria na lembrança. Depois, o descompasso de seu coração. Ninguém consegue entender como brota o primeiro amor, tampouco Eloi saberia. Mas, naquele momento, estava sentindo a pulsação daquilo que se imagina seja o amor.

   Entrou, poltrona 16, pelo vão da janela, viu que lá fora a vida seguia seu rumo. Sentiu que o seu coração tinha ficado em cada torrão daquele lugar que amava. O ônibus partia e deixava tudo para trás, seria uma viagem qualquer, não fosse a presença de Eloi, um menino que se aventurava em direção a um mundo desconhecido.

   Adaptou-se às luzes, à vida urbana, repleta de tudo e de nada. Trabalhou. Tentou divertir-se nas noites. Amizades que pouco duravam. Não entendia as coisas do seu coração.

   Quando o sono não vinha, viajava de volta à sua cidade. Via-se entre amigos. Surgia sempre a menina dos olhos castanhos, que flutuava ao vento, quando dela se aproximava, a sirene uma vez, uma buzina outra vez, um ruído qualquer, sempre algo o impedia que conseguisse ver o sorriso de Rebeca.

   Andou errante. Não encontraria sossego para seu espírito, pois tentava sufocar uma força que era maior do que poderia suportar.

   Em sua busca pensou amar mulheres, mas não se sentia feliz, pois em todas elas esperava encontrar o suave olhar da menina que ficara no passado.

   Chegou um tempo em que, vencido, retornou à cidadezinha, onde tinha deixado a chave da sua felicidade.

   Melhor teria sido ficar nas anônimas companhias do grande centro. Desceu. Olhou as pessoas. O tempo havia passado. Outros moleques brincavam nos lugares, mudados. Viu-se ali entre os meninos. Uma senhora empurrava um carrinho com seu bebê. Parecia ser a Rebeca. Sim, era. A mesma trança, o mesmo andar. Um senhor se aproxima, toma a criança em seus braços, dobram a esquina, somem. Sempre fugidia.

   Girou a cidade buscando encontrar coisas que só existiam em suas lembranças. Uma bola escapole do campinho e passa em sua frente. Domina, levanta e chuta. Acompanha o semicírculo que ela faz, até cair nos pés dos guris. Um deles aponta o indicador para o alto e grita: "valeu",  e voltam a brincar.

  Lembra então o dia em que o seu olhar adolescente e traiçoeiro banhou o corpo inteiro de Rebeca. Sorriu.

  Olhou o relógio, ainda havia tempo para tomar o próximo ônibus. Partiu.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Borboletas azuis

   Era uma úmida tarde de outono, nuvens esparsas. Mulheres esguias e vazias andavam no parque. Uma densa névoa de pó. Um ruído urbano. Sofridas árvores. Essa era a imagem que Tobias estava cansado de ver. Não conseguia encontrar beleza em mais nada. 

   Coragem, um salto e tudo estaria acabado. A altura, a profundidade, e o fato de não saber nadar pesaram na escolha de Tobias. Olhou mais uma vez, deteve sua visão num velho homem que atravessava a pé, desviou sua atenção para um casal, que cruzava a velha ponte no outro lado, morosamente pedalavam suas bicicletas. Parecia-lhe o melhor horário, pouco movimento.

   Naquela manhã despertara com um lúgubre sorriso em seu rosto, seus olhos exalavam um brilho, como a indicar que a sua procura por uma solução derradeira tivesse chegado ao fim. Essa expressão precisava ser dissimulada para não atrair suspeitas. Não havia porém maiores preocupações, já que marcas físicas não existiam, por isso sentia-se seguro em encarar sua esposa, enquanto tomava seu café matinal. As marcas que realmente interessam Tobias não conseguia apagar. Mesmo que todas as pegadas materiais tivesse ocultado, restara o brilho suspeito em seus olhos. Esse detalhe jamais escapa da percepção de uma mulher. Júlia fingiu não perceber o que via. Sabia, no entanto, que aquele olhar apenas confirmava a intuição que seu homem já não era mais seu. Logo após o marido deixar a casa, mergulhou em tristezas.

   Era meia-tarde, o momento propício, caminhava em direção ao fim. Procurava não pensar em nada, nada que o desviasse de seu intento. Não acelerou o passo, nem tampouco andou demasiadamente lento. Ninguém tem domínio total sobre seus pensamentos, ainda que não quisesse, sua imaginação transportou-se para um raro momento em que sentira uma sublime felicidade. Sabia exatamente que esse tipo de recordação poderia por tudo a perder. Abortou-a. Teimosamente sobrevinham recortes, ainda tentava entender onde foram parar os seus sonhos. Tarde demais. Estava chegando, nada seria capaz de detê-lo. Via-se em voo. Pisou na cabeceira da ponte, apenas mais alguns passos. 

   Olhou para trás, um vira-lata o seguia. Parou, o animal também; andou, o animal o seguiu. Fingiu não ligar e continuou. Mas algo havia chamado sua atenção. O cão tinha apenas três patas. Chegou na altura do salto. O animal se aproximou e seu olhar confirmou aquilo que imaginara. A pata dianteira direita não existia. Sentou-se no meio-fio e tomou o cão em seu colo. O bicho aninhou-se. Juntou-o em seus braços e foi para casa. 

   Naquela noite enquanto conciliava o sono rememorou o seu dia. Um salto para o além, como havia imaginado, malogrou. Reprogramou para o dia seguinte, seria então, Além do salto, até melhor, um trocadilho significativo, com tais pensamentos, adormeceu.

   Os traços de decepção em seu rosto, pelo fracasso do dia anterior, não passaram despercebidos por sua mulher. Enquanto seus olhos olhavam para lugar nenhum, ela o seguia disfarçadamente para descobrir em que mundo ele andava. Tratou seu cão de três patas e olhou pela última vez, quase sem querer, a figura pasmada de Júlia, envolta numa profunda tristeza.

   Apressou-se, não poderia dar chances ao acaso. Avançava pela ponte. No ponto exato onde colocaria o seu pé para o impulso, pousou uma borboleta, era uma borboleta azul, e em suas asas aquele azul esmaecia, proporcionando um admirável jogo de cores. As asas ainda batiam para estabilizar o impacto do pouso. Tobias, que há muito tinha abandonado suas pesquisas, viu aquela espécime, e por instantes, perpassou-lhe a beleza. Conseguiu ver a beleza naquilo que realmente era belo. Assim como pousou, decolou para a vida. Lá se foi com sua graça. Essa simples manobra da borboleta azul despertou Tobias. 

   Tinha pressa, precisava contar a boa nova para sua esposa. Era como tivesse se livrado de um estado de transe, de volta à vida. Tobias não sabia, mas um pingo de pequenos acasos havia rompido o casulo no qual se encontrava, permitindo que um oblíquo raio de sol o despertasse da depressão profunda.

   Abriu a porta. Viu folhas soltas pelo chão daquilo que parecia ser um diário. Apanhou uma. Terça-feira. Nesta manhã tive a certeza que você não era mais meu, perdi-o para o mundo. Pegou uma outra. Quarta-feira. Sou como esse cão que não sei de onde você trouxe, mas não me falta uma perna, falta-me você, que era tudo o que eu tinha. Pela porta do quarto, entreaberta, pode ver o corpo estirado de sua Júlia, já sem vida. Entrou no quarto, o vira-lata ora lambia os pés gelados de Júlia, ora produzia um grunhido, como se chorasse.

   Tobias corre em direção ao ponto, apóia seu pé, um velho homem que cruza a ponte, naquele instante, acena, Tobias já não vê mais nada, salta.



   (Um pingo de acasos, depois, Vira-lata, e, finalmente, Borboletas azuis, este pareceu-me melhor. Uma úmida tarde de outono, com um límpido céu azul,... é bela).

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Pingo, a revanche

Ninguém passa de um pingo.
Errado!
Por quê?
Há pingos e pingos.
Exemplo?
Pingo de chuva (Filipe) e
Pingo de pinga (Michele).
Mas quem vale mais?
Pingo de pinga.
Pingo de pinga sem pingo de chuva morre a cana.
Hummm.
Ah, e o pingo em latim (Cassiano)?
Só muda a linguagem, o pingo é o mesmo.
Perfeito.
Ninguém passa de um pingo.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Pingo


   A corrida para participar do livro, sugestão do Rui, já começou. Como a Marieli, pensei também em aprender a fazer poemas. Pelo menos unzinho, de início, para poder figurar entre os autores. Fiz algumas pesquisas entre os expoentes da área, que gentilmente falavam de sua arte. Um deles disse que devemos focar os sentimentos, não as coisas. Boa dica, pensei. Pus-me a enumerar sentimentos e tal. Entretanto, lembrei que “no meio do caminho tinha uma pedra”. Se assim fosse, esse belo poema jamais teria existido. Queria criar um poema que fosse ao mesmo tempo inteligente e profundo (um engraçadinho poderia sugerir como título Poços Artesianos, ao que, meneando a cabeça sem nada responder, deixaria ele com seus gracejos). Um outro deu a entender que o título é a peça de arremate; outros, pelo contrário, disseram que a partir do título se constrói a obra, como se fosse a pedra fundamental. Imaginei algo que tocasse a alma das pessoas, mas que não dissesse tudo, deixando nas entrelinhas as melhores partes.


   Então, já sabendo que o bom de um poema é que as palavras podem tomar um significado conotativo, diferente daquele usual, não existe forma definida, é uma criação inteiramente livre, a criatividade, afinal, é o limite de cada um. Lancei-me à obra.

   Veio o título. Pingo. E agora que venha a inspiração. Olhei aquele branco do word e o Pingo bem ao alto. Veio a primeira ideia. Ninguém é mais do que um pingo. Parei por aí. Enveredava para a insignificância do homem em relação ao tempo e ao espaço. Parecia um bom viés. Fui em diante.

Pingo!

    Ninguém é mais do que um pingo,
    Pingo de orvalho,
    Já continuei mal, caralho!
    Pingo de amor,
    Não sou poeta, que horror!

Isabel, nunca leia isso, e se acaso o fizer, socoooorro!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Ilusões


   As mãos trêmulas daquela senhora iam desenhando sua assinatura. Era para comparecer num exame de rotina. Isso não importa. Ela que já fora criança, adolescente, e depois, um dia, quando retornava do colégio, cruzou com um rapaz, que olhou para dentro de seus olhos, seria ele, anos depois, o pai de seus três filhos. Mas agora, estava ali com sérias dificuldades para encerrar os traços de seu nome naquele papel. Por detrás de seu rosto, marcado pelo passar do tempo, havia uma história de amores, paixões, bailes, canções e saudades. 
   Não tão longe dali, bati várias vezes numa porta, havia uma luz lá dentro, logo, alguém estaria lá. Olhei a casa, as coisas, o quintal, e pela fresta, vi entulhos numa estante. Detalhes falavam de um passado. Se voltasse um pouco no tempo, sem muito esforço, poderia ver que naquela parede desbotada outrora havia uma cor. As coisas falam, estão a dizer que foram esquecidas, mas que um dia houvera vida por ali.
   Quando deixava o local, não convencido, porém, um senhor, lentamente abriu a porta e sinalizou algo. Coloquei-me diante dele, e fiz uma certa abordagem. O velho senhor não conseguia falar, seus lábios se moviam, mas não pronunciavam palavras. Tentou fazer sinais, mexeu seus magros braços em direção a algum lugar. Seu aspecto era de uma pessoa solitária, muito magra, já não conseguia mais se comunicar, seus traços denunciavam seu recolhimento da vida, havia chegado ao fim. Talvez seu corpo ainda teimasse em respirar, mas sua alma já não estaria mais por ali. Quem sabe repousava numa bela tarde de verão, quando beijou seu grande amor pela primeira vez. Quem sabe onde estariam seus pensamentos? 
   Quando a vida não se renova, as marcas dos dias estão a gritar que o tempo passa. Nas cidades, que crescem do dia para a noite, ninguém percebe o passar do tempo. Lá, as casas se revestem de novas cores, modernas. Velhos prédios são implodidos e no vazio de seu lugar erguem-se modernas arquiteturas. Ninguém percebe aquela velha senhora, nem aquele senhor que já nem mais fala.
   Retornei para casa, algo me dizia que vivemos uma ilusão.

terça-feira, 6 de março de 2012

Houve uma vez uma formatura



    Início de março de 2012, últimos dias daquele verão. A Bárbara aguardava o anúncio de seu nome para caminhar em direção ao canudo. Poucos minutos a separavam do ponto máximo daquele cerimonial. Muitas emoções tinha vivido naqueles últimos dias. Não era uma formatura qualquer, não só o fato daquele ser um momento mágico, mas as circunstâncias envolvidas conspiraram para que tudo estivesse carregado de emoção. Seu coração palpitava, olhava toda aquela gente, ali estavam seus amigos, familiares, sabia que estavam ali homenageando-a. Se aquilo que sentia era felicidade, a felicidade é um misto de ansiedade, alegria, nervosismo, apreensão. Enfim, anunciaram seu nome. Bárbara Nicoli Danielli dos Santos é agora Bacharel em Administração. 

    A Clau, envolvida em todas as fases operacionais da formatura, no instante em que chegava em casa, depois do baile, teria deixado escapar em voz alta para si mesma: “Nossa, tudo foi tão rápido”. Estaria se referindo à formatura ou à brevidade da vida? Ontem, a pequena Bárbara ainda confundia atrapassar com ultrapassar, dorroviária com rodoviária. Estávamos em Salto do Lontra, PR. Esperou o fim da ditadura militar, a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 para mostrar seu sorriso para o Sudoeste do Paraná, e agora para todos os presentes em sua formatura. Foi tudo tão rápido, de fato. “El Tiempo Es Veloz”, diria Mercedes Sosa, por isso é preciso viver a vida. 

   Lançando um olhar para a ala de gafanhotos que infestavam as dependências do Salão, às margens do lago na AABB, e logo depois presentes nas suntuosas instalações do Clube Mampituba, onde sucederam a colação e o baile. Por fim, quando extasiados de festa, mas ainda não nocauteados, fizeram a passagem final no apartamento 401, do prédio Carajás, na residência da homenageada.
   Quem ainda não conhecia o lado divertido e cativante da Bárbara teve a oportunidade, já conhecíamos o seu encanto, não nos surpreendemos com sua aura de gafanhota.

    Se uma gafanhota já é especial, então um bando é “coisa de outro mundo”.


   Enquanto uns se preparam para o evento, salão, roupas, pinturas e tal, outros um tanto despreocupados travam uma luta mental. 

   
  
   Jackson Igor, grande Chef, bem ao estilo dos gafanhotos foi o primeiro que chegou e, claro, o último que saiu. Mas chegou pronto para colaborar, logo de início fez um manjar, nada menos que um salmão com legumes ao forno, e, obviamente, um vinho de boa safra. 


   A Bárbara e suas inseparáveis amigas. Aprontavam lá na praia, ainda pirralhas, hoje profissionais, formadas, nunca perdem uma oportunidade de continuarem escrevendo essa linda história de amizades.


  Note bem, há um piercing nos lábios dessa menina chamada Bárbara Nicoli. Os antigos maias praticavam a arte da perfuração dos lábios, uma espécie de rito de passagem para a vida adulta. Se existe somente uma raça,  a raça humana,  então temos todos um pouco do DNA dos antigos povos que habitaram a America Latina. Mas, como diz as belas palavras dos poemas da outra gafanhota Isabel Giacometi, o tempo, ah o tempo, inexorável. Veja abaixo, algum tempo depois. (Jamais teria a indiscrição de dizer que desmaiou três vezes ao colocar esse tal objeto, recuei pensando no cara que falou da moça da tequila).






   Os gafanhotos parecem sempre querer desafiar os princípios elementares, depois dos abusos da noite anterior o que se espera é a ressaca, recolhimento, mas a foto abaixo comprova que não foi exatamente isso que aconteceu.


   A magia se manifesta pelos símbolos que vão se forjando ao longo de uma história. Há, pois, uma tirada espetacular desse gafanhoto chamado Jackson Igor. Vendo que a Michele dançava samba, chamamé e qualquer música que tocasse, com a simplicidade das coisas que todo mundo via, mas ninguém ainda tinha pensado, falou: "a Michele é uma poliglota da dança". Eiah gafanhotos e suas tiradas que marcam os momentos de um encontro. 

  Agradecemos a presença de todos. Para a Bárbara, um agradecimento especial, não apenas por ter nos proporcionado a chance de vivermos esses momentos ímpares, mas também pelo presente sendo aquilo que você é.


















   Aqui, fica registrado o olhar de Jackon Higor..

   Esta noite de festa e homenagens a grande gafonhota Bárbara Nicoli, foi também para mim um momento mágico de rever este povo magnífico que chama-se gafanhoto, mas algo que nao foi escrito por este grande escritor gafanhotal , Charles Ferreira dos Santos, mas que aconteceu e foi de grande valia para o baile de formatura, em um certo momento estava um calor absurdo , então a ''tia'' Clau viu que as portas da sacada do salão estavam fechadas e então a ideia gafanhotal da festa, e em um tom de convocação a ''tia'' Clau chamou os três gafonhotos mais proximos da porta, Alexandro, Thales felipe e eu, Jackson , quebramos os arames que amarravam as portas, invadimos a sacada aos gritos de ''gafanhotos'' arrastando mesas e alegria, e como diria o grande pajador Jaime caetano Braun ''não ha quem pinte o retrato de um bochincho quando estoura'', e deste entrevero saiu até trenzinho de carnaval no meio do salão.

   Espero que em maio possamos nos reunir novamente em Ubirici-SC.

   Não importa onde estarei nem por onde andei, o que realmente importa é que sou um  Gafanhoto.


   E tenho dito.



   Jackson Higor