quarta-feira, 30 de maio de 2012

Dança de rua

 

     Recebeu o recado com certo ceticismo. Não era a primeira vez que estava sendo lembrado para participar desses projetos. Já duvidava que desse em alguma coisa. Uma vez, por falta de recursos; outra vez, por falta de profissionais; e agora, qual seria a desculpa? Ainda assim, queria acreditar que desta feita tudo seria diferente. Não comentou tais pensamentos com a moça que lhe passou a notícia. 

     Um vento de esperança soprava em seu rosto. Fora escolhido para participar de um curso de dança, street dance1, programa social para promoção da cidadania. Constava da relação de adolescentes em situação de risco. Embora a razão que lhe fora apresentada, por ocasião  do convite, não mencionasse tal fato. Tinha então 15 anos.

     
     No mesmo dia em que se preparava para a primeira aula, seu irmão, dois anos mais velho, tinha sido flagrado consumindo crack. Partiam então para caminhos opostos: Tiago, subindo os degraus daquela escada que o levaria à primeira aula; Lucas, conduzido para um estabelecimento educacional com liberdade restrita.

     Tiago olhou pela última vez as feições de seu irmão. Viu seu olhar perdido, inexpressivo, sem aquele brilho de outrora. Um sinal o fez estremecer, era como se pressentisse que nunca mais tornaria a vê-lo.



     A teoria da proteção integral2 fazia-se real no horizonte de Tiago. Começava desabrochar seu talento para a dança. Agarrou-se a esse fio de luz que atravessou seu caminho. Desde as primeiras aulas, sentia-se no paraíso, dançava com leveza. Dedicava-se inteiramente, progredia.


     Nunca chegou a ficar sabendo, mas seu irmão, ainda nos primeiros dias, evadiu-se da entidade em que fora internado, tendo tomado rumo incerto.


     Lucas. na verdade, fugiu da entidade e voltou a consumir crack. Não tinha mais domínio sobre si mesmo, a dependência química estava corroendo aceleradamente o que ainda restava daquele menino tão jovem. 

     O talento de Tiago para os passos da street dance ficou logo demostrado, desde o princípio. Somando-se sua dedicação e determinação, logo estaria na condição de auxiliar do mestre.
    

    Algum tempo depois, Tiago seria laureado como aluno destaque do projeto de inclusão social. Propostas não faltaram para que iniciasse sua carreira de professor de dança de rua. Deu-se bem Tiago. Soube aproveitar a rara oportunidade que um dia cruzou seu caminho.
     

     Seu irmão, Lucas, não teria a mesma sorte. Gostava de violão, e até tinha aprendido alguma coisa em casa de amigos. Mas, em vez de um projeto aos moldes daquele do seu irmão, a droga chegou primeiro e destruiu não apenas seu talento, mas sua vida.
     

     No exato instante em que Tiago abria uma Conferência dos Direitos da Criança e do Adolescente fazendo aquilo que tanto amava, Lucas estava sendo transportado por uma ambulância. Numa perseguição implacável entre traficantes de grupos rivais, fora atingido em cheio por um carro que vinha em direção contrária. Era o seu fim.





1. A dança de rua ou street dance remonta à Grande Depressão de 1930. Artistas desempregados passaram a praticar na rua a sua arte. Nascia, então, um novo estilo de dança que se espalharia pelo mundo, chegando ao Brasil por volta dos anos 70. Fonte: http://www.movimentolivre.com.br/street-dance

2. A teoria da proteção integral fundamenta-se, precipuamente, no artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil, no Estatudo da Criança e do Adolescente, na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e nas convenções internacionais de proteção aos direitos humanos.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Amor sem fim

     

 









   
     Casou muito nova e teve vários filhos. Enamorou-se aos 16 anos com aquele que seria o único e eterno amor de sua vida. Viveu para o marido e para os filhos. É possível que nem soubesse, e talvez ainda nem saiba, que poderia ter tido uma vida própria, e ainda assim eles teriam vivido da mesma forma. 

     As sombras, os risos, as algazarras, do tempo em que sua casa era habitada por todos, persistem em suas reminiscências. Tudo parece vazio agora. Os filhos seguiram cada um o seu caminho. No entanto, não se sente só. Sabe perfeitamente que não viveu em vão. Viveu para amar e proteger sua prole. Mesmo agora, tempos depois da partida de seu amor, ainda vive para ele, visitando-o periodicamente naquela sua última morada.

     Tudo em quanto acreditava foi submetido à prova. Passou por momentos difíceis. Nunca imaginou que teria tanta força. Não sabia de onde teria vindo a energia que não se exauria, e assim pode enfrentar, durante mais de dez anos, a enfermidade, que foi levando aos poucos o seu eterno namorado.

     Foi nesse longo período que viveu mais intensamente o amor. Jamais arredou o pé. Todas as suas atenções estavam voltadas para seu homem, agora enfermo. Só mesmo ela ainda conseguia ver por detrás de sua face, outrora tão vivaz, agora quase inexpressiva, a essência do rapaz que roubou seu coração. Abandonou por completo qualquer atividade pessoal que não tivesse ligação com os cuidados ao seu doente.

     A morte pode ter diminuído seu sofrimento, mas jamais abalou seu amor e suas convicções. Dedicou-se até o fim. Amou até o último suspiro. E seu amor, tanto tempo depois que ele já se fora, em nada mudou.

   Jogou fora as rosas já murchas, trocou a água do vaso, colocou novas flores de campo. Conversou mentalmente alguma coisa. Sussurrou um “até logo”, fez o sinal da cruz costumeiro e, então, como por encanto, sentiu uma leve carícia do vento em seu rosto. Olhou uma vez mais para trás e voltou para casa. Nunca se sentirá só.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A chuva

Não há distância que possa separar dois corações que se amam.

Uma tímida chuva vai dissipando os piores cenários que se avizinham.

Cai suavemente, molha o desprevenido pedestre, que se projeta em busca de abrigo.

Cai dos céus e eleva as já arqueadas plantinhas.

A chuva que agora cai tem o mesmo significado do calor que sinto,

quando encontro você.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Dançando nas nuvens



   Finalizou o barbear e deu o último açoite no cabelo. Bebericaram o esquento. Virgínia retocou seu batom e mirou-se de soslaio no espelho. Deram-se as mãos e dirigiram-se à arena. A magia de uma noite de dança começa muito antes do primeiro passo no tablado de um certo salão. É milenar a crença que o magnetismo está no ritual. 

   Um brinde, um olhar, e a música. Um convite e segue-se a primeira dança daquela noite. Pernas se cruzam, corpos se tocam, um casal flutua no salão. 

   Em avanços e recuos, ora ligeiros, ora lentos, os bailarinos serpenteiam ao embalo das canções. Aquele momento não haverá de acabar. Há no ar um leve cheiro de êxtase. O casal baila como se estivesse sozinho no mundo. É a magia dos rituais de uma dança. 

   A noite avança pela madrugada e em algum lugar ficaram os dissabores. Remotas e recentes composições embalam o ritmo dos dançarinos. Como se estivessem fundidos, deslizam em movimentos livres e sincronizados. 

   A sessão caminha para o final. Juntam-se as mãos e dirigem-se à saída. A noite está só começando, tem pela frente a cereja do bolo. Naquele fragmento de tempo, viveram e dançaram nas nuvens.



quinta-feira, 10 de maio de 2012

Um homem para chamar de pai



   Os nomes verdadeiros foram preservados. Um senhor viúvo, com certa distinção social, tanto pelas posses quanto pela retidão de caráter (talvez mais pelas posses), tinha 5 filhos. 

   Era hora do engraxate passar em sua casa. Já tinha separado suas botas para dar serviço ao menino. Era um dia frio e úmido. Só mesmo o calor do fogão a lenha poderia manter aquecidos seus aposentos. (Há frios que o calor do crepitar do fogo não aquece). Uma casa confortável, nas proximidades da cidade. A ausência de sua senhora podia se notar em várias dimensões: nas janelas da casa ainda fechadas, nos olhares perdidos e tristes de Tomás, o viúvo. Em cada pequeno detalhe poderia se perceber que ali faltava o dedo de Luíza. Toda a energia que fazia aquela casa estar em ordem fora tirada sem autorização. Assim são as coisas da vida, tentava se conformar Tomás. Para que tudo isso, perguntava-se, o que é a vida, afinal? O que teria sido feito do duro Tomás, rígido, determinado, audacioso, faceiro? Tomás perdera o rumo, fraquejava. Estava velho demais, cansado demais para superar a perda de sua senhora. Chegou o engraxate.

   Olhou aquele menino. Lustrava suas botas. Conhecia um pouco da história de Jair. Morava de favor aqui e ali em locais incertos. Movido pelo sentimento humanitário, que a perda não havia abalado, resolveu acolher Jair. Daria um lar, um futuro, em pratos que comem 5 podem comer 6, pensou.

   Não avaliou bem semelhante decisão. Seus filhos se revoltaram. Mais tarde entendeira o motivo pelo qual opuseram tanta resistência. Tempos depois, sentindo-se debilitado, decidiu fazer a partilha de seu patrimônio. Ficaria com o suficiente para seu sustento e dividiria o restante. Apesar da oposição contundente dos irmãos, a Jair coube parte igual. 

   Cada filho tomou seu quinhão e partiu para longe. Exceto Jair, que ficara ao lado do pai. Então Tomás passou a relatar sua vida ao já moço feito, o filho adotivo. A partir de certa idade as pessoas passam a viver do passado, quem o teve. Tornaram-se fieis companheiros. Jair, eternamente reconhecido; Tomás, imensamente grato por ter alguém para dividir seus últimos dias. Nessa relação de pai e filho não havia laços consanguíneos, mas vínculos de carinho, amor e fraternidade, que, como pode perceber Tomás, era o alento que necessitava para seus derradeiros dias.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Deus

   Ex-usuário de drogas, agora palestrante. Relatava os seus piores momentos, fazia uma pausa estratégica e continuava. Já sabia, pelas feições das pessoas, se havia mexido em seus sentimentos. Se observasse traços de piedade, era hora de falar do processo de recuperação. A clínica de internação, a dedicação das pessoas, as recaídas, a rede de almas que lutaram junto com ele para livrá-lo do vício. E prosseguia, o orador, seguro, a transmitir sua saga. Desde os que o encaminharam, até aqueles que viveram todos os momentos, os profissionais, os familiares, os desconhecidos, que sabia, torciam pela sua sorte. Ilustrava com dados, dando ainda mais credibilidade à sua fala, “três em cada cem, dizia, conseguem se recuperar”. Interrompia, por frações, como a dar tempo para as pessoas assimilarem melhor suas palavras. Olhando fixamente para alguém, retomava. “Pouco, se vocês mirarem os 97, mas uma vida salva, pelo menos, teria valido a pena o esforço da corrente de pessoas que se dedicaram”. 

   Por fim, junta suas mãos espalmadas ao peito, ergue seus olhos para o alto, e pronuncia as seguintes palavras: “Deus, devo a Deus a minha salvação e a Ele agradeço”. Encerra sua palestra aos aplausos efusivos dos presentes.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A lenda das sete cachoeiras






Reza a lenda que...


   A filha do grande líder Xokleng, então com 10 anos de idade, de uma tribo que habitava as imediações de um pequeno riacho, era uma indiazinha diferente das outras. 

   Recolhida em sua oca, nem brincava nem fazia as coisas de sua idade. Tristezinha, a pequena indiazinha xokleng preocupava seu pai, o velho cacique.

   Nenhum tratamento com ervas, sugerido por feiticeiras da tribo, teria dado qualquer resultado. Quietinha, em seu canto, passava os dias a pequenina índia. Fazia desenhos em recortes de rochas que eram trazidos pelos guerreiros da aldeia. Inscrições rupestres e, mais tarde, artes em grafite, denominariam os homens brancos, tempos depois. Mas era, na verdade, o único passatempo daquela solitária indiazinha.

   A notícia dessa enfermidade da filha do grande líder se espalhou por tribos vizinhas. Muitos tentaram ajudar, sem nada conseguir. 

   Um dia, uma benzedeira soube da triste sina do velho cacique e sua filha. Partiu em direção à aldeia, sabia que ficava próxima a um pequeno riacho, o qual juntava-se a um grande rio, que corria engolindo os pequenos afluentes, esse grande rio era o rio Canoas. Lá chegando, tomou conhecimento de tudo quanto tinha sido feito, sem que nada tivesse dado resultado. 

  Desconfiou, a benzedeira, que a indiazinha precisava brincar em coisas diferentes daquelas que todos tinham lhe mostrado. 

   Orientou todos os guerreiros daquela tribo a construírem pequenas quedas de água para que a indiazinha brincasse. 

   A criança se sentiu tão feliz com as brincandeiras nas cachoeiras ao longo do riacho, que voltou a sorrir tal quais as meninas de sua idade.

  O grande líder ficou muito agradecido, e, desde então, o riacho das cachoeiras passou a ser conhecido como Rio Sete Quedas.

   Desse acontecimento surgiram os, hoje conhecidos, toboáguas ou tobogãs, escorredores aquáticos, que fazem a felicidade das crianças pelo mundo afora.

   Se você fizer a trilha das cachoeiras, no Rio Sete Quedas, irá perceber que entre uma e outra cachoeira há um perfeito toboágua nas corredeiras do riacho. Caso o encontre, pare por um instante, medite, deixe que a alegria da indiazinha xokleng penetre em sua alma. Você voltará para casa mais feliz. Acredite.


Como chegar: Urubici, SC, Serra Catarinense, 7 km do centro da cidade, às margens do Rio Canoas, sentido Rio Rufino.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

Pinturas em grafite


   Pegou o único objeto que restara daquilo tudo que já tinha entendido que era um sonho: um tosco colar de pedras. Depositou-o no bolso de sua jaqueta de couro preta, e saiu. Anoitecia no downtown. Ele mesclava as línguas, como era de costume entre os aspirantes a boy. Apoiou-se no paredão de concreto que separava a rua do malcheiroso rio. Olhou pela última vez aquele colar que um dia fora a coisa mais valiosa que já tivera. Arremessou-o. As pedras mergulharam nas escuras águas e geraram um sem-número de elipses que se distanciavam simetricamente do epicentro, dando ao gélido e poluído rio uma rara imagem de beleza, provocada pelo presente que ganhara de Rebeca, em seu aniversário de quinze anos. Olhou aquelas ondas que se propagavam em direção à borda, como se viessem ao seu encontro. Abandonou o local. 

   Tempos depois, Eloi entenderia que semelhante atitude em nada resolvera. 

   Havia mudado em vários sentidos. Preocupa-se com a aparência, o corte moderno do cabelo, um perfume da moda. Portava um blackberry branco, no qual navegava com destreza, ora conferindo os recados nas redes sociais, ora travando batalhas medievais, naqueles jogos em tempo real. Poderia ser confundido facilmente com um suburbano. Porém, restavam resquícios daquele menino interiorano. Prestava pequenos favores sem que em tais atitudes pairassem quaisquer segundas intenções. Mas já era um suburbano, mais de corpo do que de alma. 

   Olga, uma ruiva que nada tinha de expansiva. Olhos miúdos que davam à sua face uma expressão de paz e delicadeza. Rosto assimétrico, medidas distantes daquelas que se avizinham ao padrão atual de beleza. Gostava de poesias. Jamais causaria alvoroço em lugares em que fosse vista. Discreta. As qualidades que importam não estão na superfície. Só alguém muito perspicaz poderia penetrar na beleza interior da pequena ruiva de cabelos lambidos. De algum modo, sua presença contrastava com certos ambientes. Olga tinha autonomia. Foi ela quem fez Eloi perceber o belo no trivial, nas pequenas coisas. 

   Quando viu aquele novo colega pela primeira vez, sentiu um estranho palpitar. Sua sensibilidade a movia em direção a Eloi. Tornaram-se amigos. 

   Desde então, formaram um belo casal. Parceiros de todas as horas. Olga, no entanto, percebeu que uma sombra impedia que seu amigo se entregasse para os sentimentos que não mais se encaixavam como simples amizade. Respeitou. Pensou em desistir. Porém, não abandonaria aquela fervorosa paixão contida, sem abrir seu coração como jamais havia feito. 

   Vestiu o seu melhor vestido. Organizou as melhores palavras. Deixou que a brisa daquela noite embalasse suas esperanças. Amou Eloi com todo o amor que tinha para amar. 

   Tentou cicatrizar tudo aquilo. Deixaria que resolvesse seus dilemas, que, como costumava divagar, tinham ficado num lugar distante do passado. Na sua aguçada capacidade de leitura da vida, Olga teria entendido que os conflitos interiores de Eloi não se curariam assim com suas poesias, e, quem sabe, com coisa alguma. 

  Distanciaram-se. O tempo não espera. Ele, entre o passado e o presente. Ela, em seus dias de retiro, lembrou do primeiro bilhete, ainda guardava em sua bolsa. “Olga, hoje estou de folga. Quer sair comigo?” Ao que, brincando, teria respondido: “Eloi, querer eu quero, mas a mãe não deixa”. Foi até um paredão e largou aquele singelo bilhete, que flutuou e logo foi empurrado pelo vento, até banhar-se nas águas escuras daquele rio, que cortava a cidade. 

  Eloi retornou daquela sua viagem ao passado. Imaginou portar sua alforria. Sentaria naquele muro e esperaria Olga. Havia novidades no ar. 

   De fato, cruzaram-se. Foram a um romântico bar, no qual tocavam velhas canções manhosas. Havia preparado o discurso de sua entrega, mas deixaria para dizer-lhe nos primeiros raios do amanhecer. 

  Olga quando o viu, de pronto, começou a falar de coisas, as quais Eloi nem na mais remota possibilidade teria pensado. 

   “Sabe - começou - quando já tinha principiado a escrever as” Memórias de uma ruiva solitária”, um sujeito vindo de uma pequena cidadezinha, fez-me perceber que eu ainda vivia”. Suspirou. “Não sei se já lhe disse - prosseguiu - gosto do tipo rústico, porque nele as emoções estão sempre à flor da pele, não tem a fineza de movimentos, não dissimula sentimentos, diferente de alguns tipos que têm a delicadeza no trato, agem com tamanha desenvoltura que nunca se sabe o que há por detrás de cada gesto, de cada palavra bem empregada”. 

   Continuou então a falar-lhe desse sujeito que a deixou encantada, disse que o tal tinha um sotaque que lhe soava poesia. “Como assim, como assim um sotaque caipira poder soar poesia”, pensava Eloi. 

   Em suas confidências que se arrastaram pela madrugada, Olga segredou a Eloi que por ele sentia grande carinho, via-o como um aprendiz de playboy, mas que, na verdade, não conseguia entender quem realmente ele era. Continuaria a ser sua amiga, se assim o quisesse. 

   Foi uma longa noite, o nascer do sol despontava no horizonte, deixou Olga em sua casa, e caminhou a esmo. Quando percebeu estava no paredão. Em sua extensão, a arte em muros, nas pinturas em grafite, sugeriam um mundo diverso da realidade. Lançou um certo olhar. As mansas e turvas águas tragaram o seu colar, consumiram o singelo bilhete, mas não foram capazes de arrefecer suas lembranças. 

   Chegou em casa. Como era de seu costume, pegou um livro qualquer e abriu ao acaso. Leu o seguinte trecho. 

“E como farei ginástica 
Andarei de bicicleta 
Montarei em burro brabo 
Subirei no pau-de-sebo 
Tomarei banhos de mar! 
E quando estiver cansado 
Deito na beira do rio 
Mando chamar a mãe-d'água 
Pra me contar as histórias 
Que no tempo de eu menino 
Rosa vinha me contar 
Vou-me embora pra Pasárgada”1

   Fechou. Perguntando-se onde estaria a sua Pasárgada, que sempre estivera à procura, adormeceu. 


1. Manuel Bandeira (1886-1968). “Vou-me embora para Pasárgada”.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Suaves lembranças


   Na sua juventude, não teria como saber que deixava para trás pedaço de um mundo infinitamente lindo, e, ao contrário do que imaginava, se um dia voltasse, jamais o encontraria.

  Sonhou um dia partir, uma cidade grande, compraria uma jaqueta de couro e falaria gírias, e um dia, quando retornasse, conquistaria Rebeca, a fugidia menina de olhos castanhos. Esse dia chegou.

   O aperto em seu coração parece lhe avisava. Juntava as últimas coisas, mas já olhava, com um indecifrável sentimento, o inclinado gramado onde brincava nas belas tardes de sua adolescência.

   Deixava os amigos que também tomariam rumos outros, e nada então seria como antes. Em suas inocentes fantasias, a cidadezinha ficaria estagnada a esperá-lo. 

   Rebeca, suave como a noite, sorria. O olhar traiçoeiro de Eloi banhou o corpo inteiro da mocinha, um vestido rendado, uma trança, uma fugaz olhadela para Eloi, que congela, baixa os olhos e logo tenta alcançá-la, mas não mais a vê. Foi-se, correndo para não se sabe onde.

   Nunca, em toda a sua vida, esqueceria esse momento. As tranças esvoaçantes, o olhar fugaz, a suavidade de uma tarde que ficaria na lembrança. Depois, o descompasso de seu coração. Ninguém consegue entender como brota o primeiro amor, tampouco Eloi saberia. Mas, naquele momento, estava sentindo a pulsação daquilo que se imagina seja o amor.

   Entrou, poltrona 16, pelo vão da janela, viu que lá fora a vida seguia seu rumo. Sentiu que o seu coração tinha ficado em cada torrão daquele lugar que amava. O ônibus partia e deixava tudo para trás, seria uma viagem qualquer, não fosse a presença de Eloi, um menino que se aventurava em direção a um mundo desconhecido.

   Adaptou-se às luzes, à vida urbana, repleta de tudo e de nada. Trabalhou. Tentou divertir-se nas noites. Amizades que pouco duravam. Não entendia as coisas do seu coração.

   Quando o sono não vinha, viajava de volta à sua cidade. Via-se entre amigos. Surgia sempre a menina dos olhos castanhos, que flutuava ao vento, quando dela se aproximava, a sirene uma vez, uma buzina outra vez, um ruído qualquer, sempre algo o impedia que conseguisse ver o sorriso de Rebeca.

   Andou errante. Não encontraria sossego para seu espírito, pois tentava sufocar uma força que era maior do que poderia suportar.

   Em sua busca pensou amar mulheres, mas não se sentia feliz, pois em todas elas esperava encontrar o suave olhar da menina que ficara no passado.

   Chegou um tempo em que, vencido, retornou à cidadezinha, onde tinha deixado a chave da sua felicidade.

   Melhor teria sido ficar nas anônimas companhias do grande centro. Desceu. Olhou as pessoas. O tempo havia passado. Outros moleques brincavam nos lugares, mudados. Viu-se ali entre os meninos. Uma senhora empurrava um carrinho com seu bebê. Parecia ser a Rebeca. Sim, era. A mesma trança, o mesmo andar. Um senhor se aproxima, toma a criança em seus braços, dobram a esquina, somem. Sempre fugidia.

   Girou a cidade buscando encontrar coisas que só existiam em suas lembranças. Uma bola escapole do campinho e passa em sua frente. Domina, levanta e chuta. Acompanha o semicírculo que ela faz, até cair nos pés dos guris. Um deles aponta o indicador para o alto e grita: "valeu",  e voltam a brincar.

  Lembra então o dia em que o seu olhar adolescente e traiçoeiro banhou o corpo inteiro de Rebeca. Sorriu.

  Olhou o relógio, ainda havia tempo para tomar o próximo ônibus. Partiu.