terça-feira, 24 de abril de 2012

Borboletas azuis

   Era uma úmida tarde de outono, nuvens esparsas. Mulheres esguias e vazias andavam no parque. Uma densa névoa de pó. Um ruído urbano. Sofridas árvores. Essa era a imagem que Tobias estava cansado de ver. Não conseguia encontrar beleza em mais nada. 

   Coragem, um salto e tudo estaria acabado. A altura, a profundidade, e o fato de não saber nadar pesaram na escolha de Tobias. Olhou mais uma vez, deteve sua visão num velho homem que atravessava a pé, desviou sua atenção para um casal, que cruzava a velha ponte no outro lado, morosamente pedalavam suas bicicletas. Parecia-lhe o melhor horário, pouco movimento.

   Naquela manhã despertara com um lúgubre sorriso em seu rosto, seus olhos exalavam um brilho, como a indicar que a sua procura por uma solução derradeira tivesse chegado ao fim. Essa expressão precisava ser dissimulada para não atrair suspeitas. Não havia porém maiores preocupações, já que marcas físicas não existiam, por isso sentia-se seguro em encarar sua esposa, enquanto tomava seu café matinal. As marcas que realmente interessam Tobias não conseguia apagar. Mesmo que todas as pegadas materiais tivesse ocultado, restara o brilho suspeito em seus olhos. Esse detalhe jamais escapa da percepção de uma mulher. Júlia fingiu não perceber o que via. Sabia, no entanto, que aquele olhar apenas confirmava a intuição que seu homem já não era mais seu. Logo após o marido deixar a casa, mergulhou em tristezas.

   Era meia-tarde, o momento propício, caminhava em direção ao fim. Procurava não pensar em nada, nada que o desviasse de seu intento. Não acelerou o passo, nem tampouco andou demasiadamente lento. Ninguém tem domínio total sobre seus pensamentos, ainda que não quisesse, sua imaginação transportou-se para um raro momento em que sentira uma sublime felicidade. Sabia exatamente que esse tipo de recordação poderia por tudo a perder. Abortou-a. Teimosamente sobrevinham recortes, ainda tentava entender onde foram parar os seus sonhos. Tarde demais. Estava chegando, nada seria capaz de detê-lo. Via-se em voo. Pisou na cabeceira da ponte, apenas mais alguns passos. 

   Olhou para trás, um vira-lata o seguia. Parou, o animal também; andou, o animal o seguiu. Fingiu não ligar e continuou. Mas algo havia chamado sua atenção. O cão tinha apenas três patas. Chegou na altura do salto. O animal se aproximou e seu olhar confirmou aquilo que imaginara. A pata dianteira direita não existia. Sentou-se no meio-fio e tomou o cão em seu colo. O bicho aninhou-se. Juntou-o em seus braços e foi para casa. 

   Naquela noite enquanto conciliava o sono rememorou o seu dia. Um salto para o além, como havia imaginado, malogrou. Reprogramou para o dia seguinte, seria então, Além do salto, até melhor, um trocadilho significativo, com tais pensamentos, adormeceu.

   Os traços de decepção em seu rosto, pelo fracasso do dia anterior, não passaram despercebidos por sua mulher. Enquanto seus olhos olhavam para lugar nenhum, ela o seguia disfarçadamente para descobrir em que mundo ele andava. Tratou seu cão de três patas e olhou pela última vez, quase sem querer, a figura pasmada de Júlia, envolta numa profunda tristeza.

   Apressou-se, não poderia dar chances ao acaso. Avançava pela ponte. No ponto exato onde colocaria o seu pé para o impulso, pousou uma borboleta, era uma borboleta azul, e em suas asas aquele azul esmaecia, proporcionando um admirável jogo de cores. As asas ainda batiam para estabilizar o impacto do pouso. Tobias, que há muito tinha abandonado suas pesquisas, viu aquela espécime, e por instantes, perpassou-lhe a beleza. Conseguiu ver a beleza naquilo que realmente era belo. Assim como pousou, decolou para a vida. Lá se foi com sua graça. Essa simples manobra da borboleta azul despertou Tobias. 

   Tinha pressa, precisava contar a boa nova para sua esposa. Era como tivesse se livrado de um estado de transe, de volta à vida. Tobias não sabia, mas um pingo de pequenos acasos havia rompido o casulo no qual se encontrava, permitindo que um oblíquo raio de sol o despertasse da depressão profunda.

   Abriu a porta. Viu folhas soltas pelo chão daquilo que parecia ser um diário. Apanhou uma. Terça-feira. Nesta manhã tive a certeza que você não era mais meu, perdi-o para o mundo. Pegou uma outra. Quarta-feira. Sou como esse cão que não sei de onde você trouxe, mas não me falta uma perna, falta-me você, que era tudo o que eu tinha. Pela porta do quarto, entreaberta, pode ver o corpo estirado de sua Júlia, já sem vida. Entrou no quarto, o vira-lata ora lambia os pés gelados de Júlia, ora produzia um grunhido, como se chorasse.

   Tobias corre em direção ao ponto, apóia seu pé, um velho homem que cruza a ponte, naquele instante, acena, Tobias já não vê mais nada, salta.



   (Um pingo de acasos, depois, Vira-lata, e, finalmente, Borboletas azuis, este pareceu-me melhor. Uma úmida tarde de outono, com um límpido céu azul,... é bela).

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Pingo, a revanche

Ninguém passa de um pingo.
Errado!
Por quê?
Há pingos e pingos.
Exemplo?
Pingo de chuva (Filipe) e
Pingo de pinga (Michele).
Mas quem vale mais?
Pingo de pinga.
Pingo de pinga sem pingo de chuva morre a cana.
Hummm.
Ah, e o pingo em latim (Cassiano)?
Só muda a linguagem, o pingo é o mesmo.
Perfeito.
Ninguém passa de um pingo.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Pingo


   A corrida para participar do livro, sugestão do Rui, já começou. Como a Marieli, pensei também em aprender a fazer poemas. Pelo menos unzinho, de início, para poder figurar entre os autores. Fiz algumas pesquisas entre os expoentes da área, que gentilmente falavam de sua arte. Um deles disse que devemos focar os sentimentos, não as coisas. Boa dica, pensei. Pus-me a enumerar sentimentos e tal. Entretanto, lembrei que “no meio do caminho tinha uma pedra”. Se assim fosse, esse belo poema jamais teria existido. Queria criar um poema que fosse ao mesmo tempo inteligente e profundo (um engraçadinho poderia sugerir como título Poços Artesianos, ao que, meneando a cabeça sem nada responder, deixaria ele com seus gracejos). Um outro deu a entender que o título é a peça de arremate; outros, pelo contrário, disseram que a partir do título se constrói a obra, como se fosse a pedra fundamental. Imaginei algo que tocasse a alma das pessoas, mas que não dissesse tudo, deixando nas entrelinhas as melhores partes.


   Então, já sabendo que o bom de um poema é que as palavras podem tomar um significado conotativo, diferente daquele usual, não existe forma definida, é uma criação inteiramente livre, a criatividade, afinal, é o limite de cada um. Lancei-me à obra.

   Veio o título. Pingo. E agora que venha a inspiração. Olhei aquele branco do word e o Pingo bem ao alto. Veio a primeira ideia. Ninguém é mais do que um pingo. Parei por aí. Enveredava para a insignificância do homem em relação ao tempo e ao espaço. Parecia um bom viés. Fui em diante.

Pingo!

    Ninguém é mais do que um pingo,
    Pingo de orvalho,
    Já continuei mal, caralho!
    Pingo de amor,
    Não sou poeta, que horror!

Isabel, nunca leia isso, e se acaso o fizer, socoooorro!