segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A tecnologia a serviço da casa

         
     Tablet samsung galaxy dois ponto zero, com o sistema operacional Android versão um ponto três. Celular e computador numa tela de 8 polegadas, sensível ao toque, com previsão de lançamento para outubro ou novembro, um pouco antes do Natal. O modelo antigo continuará fazendo tudo aquilo que sempre fez, mas estará obsoleto. Você não vai querer desfilar por aí com um aparelho jurássico, vai? Não é sobre esse smartphone que pretendo falar.

      As janelas abertas deixam soprar o vento por entre os cômodos do pequeno apartamento, no qual eu e o Níkolas moramos. Um cheiro de ambiente arejado com o frescor daquele ar renovado. Por isso parece que é salutar manter as janelas escancaradas. Não é bem assim. O ar renovado trás consigo pó. Um pó que vai se depositando nos móveis, nos livros, nas coisas, em tudo que ocupe espaço. Mas existe a vassoura e o espanador que resolvem isso, facilmente. Não resolvem. Ao varrer ou espanar, o pó - aquele - flutua pelo ar, e depois de tudo varrido e limpo, ele, submetido à força da gravidade, e mais pesado que o ar, desce mansamente e deixa tudo empoeirado novamente. Mas eu não posso vê-lo agora, pois terminei o serviço e estou tomando quieto e pensativo o chimarrão, sentado na namoradeira da sacada, olhando o andar da vida lá fora. Três dias depois o depósito de poeira já incomoda, mas não é que a poeira tenha vindo de fora, é a mesma poeira que havia antes.

     A Bárbara, a Clau e este sujeito, num sábado de sol, passamos na Praça do Congresso, onde as pessoas tomavam caipirinha, bebericavam drinks com frutas, em cores variadas. Perto dali, podíamos vê-los conversando animados. Estávamos envolvidos numa outra. O objeto de consumo nem era um drink, nem um smartphone samsung galaxy, com gps embutido. Havia nas Lojas Colombo uma promoção de aspirador de pó ASP 1100, de marca Britânia, desde 1956. Compramos e fomos direto para casa. Ninguém gostaria de sentar numa daquelas mesas ali esparramadas pela praça, pedir algo para beber e ter ao lado um aspirador de pó das Lojas Colombo.

       Pedi licença ao Níkolas para fazer um barulho - e se tem algo irritante é o barulho desse aparelho, mas de negativo é só isso. Depois da primeira experiência com o tal aspirador de pó - a primeira vez a gente nunca esquece -, cheguei a seguinte conclusão: o cara que diz que a maior invenção da humanidade é a roda, nunca na vida usou um aspirador de pó.

MMA-7310 não é apenas uma placa de carro

  


    







       Deixamos Floripa para trás, agora era hora de exercitarmos a paciência. Durante os primeiros quilômetros da 101, o trânsito até fluíra bem. Mas, um pouco mais adiante, tudo voltou ao normal. Que me perdoem as tartarugas, o trânsito parecia uma delas se movendo. 
         O Níkolas se remexeu impaciente. "Estamos na fila que não anda, tente entrar nessa ao lado". Foi o que fiz. Logo na frente nossa fila parou e a que estávamos continuou andando. "Veja a placa do carro aí da frente (MMA-7310). Imagine que alguns nativos de Floripa tomam um bote e tentam chegar ao continente. Vem uma onda e o bote naufraga. Alguém que viu a cena fala ao celular: MMA, mano, MMA, mano. O que ele quis dizer?", peguntei ao Níkolas. Ele passou a mão em sua longa barba ruiva, deixou escapar um leve sorriso de quem encontrou a resposta, e então responde: "Fácil, o cara falou as iniciais de Muitos Manezinhos Afogados, era o que ele estava vendo". 
          O trânsito prosseguia emperrado, ou melhor, não prosseguia. Então o Níkolas olhando fixamente para a placa do carro da frente, que ainda era o mesmo, começa: "Chegamos em casa e percebemos que estávamos sem a chave de acesso ao prédio. No entanto, em poucos minutos estávamos entrando no ap. 401. A Bárbara pergunta: Como entraram, se vocês não tinham a chave? Eu respondo: MMA, Bárbara, MMA, Bárbara. O que eu disse?". Repeti o gesto do Níkolas, como se alisasse a barba, e então respondi: "Minha Mãe Atirou", e completei: "Minha Mãe Atirou a chave pela janela, você disse".
        É preciso ter paciência, muita paciência. MMA-7310. O carro seguia em nossa frente. "A sequência daquela placa 7310, se tomados os números 1, 3 e 7, apresenta uma lógica. Se a sequência continuasse, qual seria o próximo número?". O Níkolas ajeitou sua longa barba ruiva e pensou em voz alta: "1 mais seu sucessor (2) é igual a 3, 3 mais seu sucessor (4) é igual a 7. 7 mais seu sucessor (8) é igual a 15. Logo, o número seguinte será 15".
         Passamos Laguna e o trânsito acelerou. O Níkolas coçou sua longa barba ruiva, recostou a cabeça e deu um longo cochilo. Enfim, chegamos. A Clau nos recebe com "meus homens amados chegaram".
         "Vamos lá, o que vocês querem para comer?", perguntou a Clau. "Por mim, MMA", falei. Ela ainda não sabia de nada, então fui logo traduzindo: "Menos Miojo, Amore". Todo chato, quando percebe que está sendo chato, sente prazer em continuar com sua chatice. Aí, sussurei em seu ouvido: "MMA". "Já sei, menos miojo", ela falou. "Não", respondi. "Agora significa Minha Mulher Amada".
          E assim se foi mais um final de semana lá em casa. E durante o findi MMA*.




*Desafio. O que significa este último MMA. A resposta mais criativa dará direito a um MMA inteiramente grátis. Você não vai querer ficar fora dessa, vai?



         




quinta-feira, 23 de maio de 2013

Mistérios do amanhecer





O orvalho que virou geada. Querem alguns que foi obra do acaso; outros, que foi obra de um Arquiteto. Mistérios do amanhecer.

Como transmitir em palavras a sensação de frio, fico a me perguntar. O frio penetra em todos os poros. Quando falo, a voz parte da boca, mas logo se choca em um bloco invisível de gelo, e quase posso vê-la cair e rolar pela grama encoberta de geada. Animais e plantas usam artifícios para suportar baixas temperaturas. Uma grande parte sucumbe, porém. Outros devem nascer em seu lugar. O fim é a senha para a renovação. Ciclos da vida.

É muito cedo e a cidade ainda dorme. Um pássaro entoou seu cantar costumeiro, um cão uiva para dentro, aponta fumaça em uma chaminé. Em breve, alguns raios devem romper a névoa que se formou no horizonte, e deixar verde o chão agora branco. Mais tarde, a locomotiva - chalap, chalap - põe a cidade em movimento, e a geada então já se desfez. O orvalho não deixa de ser orvalho só por que pela manhã estava pintado de branco.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Coisas de quem mora sozinho

Eu hoje tive de ir tomar café ali na padaria, não havia mais xícara limpa. Ao retornar, voltei decidido pregar um aviso na pia: favor lavar sua xícara após o uso.

Saudade

Vontade de sair pedalar com você, vontade de olhar você fazendo qualquer coisa, deve ser saudade represada.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O silêncio da mãe


Por Filipe Rossato

Nos últimos dias, enxerguei algo diferente na mãe. A vida já se encarregou de nos colocar diante de várias despedidas, algumas irreversíveis, outras esquecidas; deixamos casas, cidades e amigos para trás, perdendo-nos pelos cantos do mundo que não mais nos pertenceriam. Ainda assim, um ao outro teríamos ao fim de qualquer jornada, em qualquer que fosse a circunstância. E, enquanto pude experimentar a ideia de vida, sempre a tive ao lado, preenchendo com um afeto suave os ambientes em que estivéssemos. Levando adiante os rumos que nos carregariam pelos caminhos que teríamos de seguir, liderava. Adiantava-se sobre o mundo, habilidosa, e me protegia. Mas agora, pela primeira vez, iríamos nos separar.

E nos dias que anteciparam a partida, em um dos momentos mais singulares, encontrei na mãe o peso do silêncio. Ironicamente, durante todos os preparativos da mudança, ninguém falou, opinou e reclamou tanto quanto ela. A cada nova etapa da viagem que se concretizava, ela mostrava novas dificuldades, sugeria que o processo não estava correndo da forma correta, examinava à exaustão mesmo as mínimas decisões. Afogou-me em impedimentos possíveis e impossíveis, até que a iminência da partida tornou-se real.

A correria dos dias, o trabalho e os compromissos lhe foram indiferentes, mas eu sabia que na mãe algo já havia mudado. Aqueles olhares necessariamente tristes, oriundos de uma consciência ampla, de uma dúvida profunda sobre a vida, estavam mais carregados e opacos. Perdidos pelos espaços, preenchidos de um sentimento transbordado lá do interior da mãezinha. Os mesmos olhares do vovozinho, que se camuflavam nas conversas leves, mas se denunciavam brutos e sinceros ao fim dos pequenos risos. Às vezes um pouco doloridos. Os mesmos olhares das tias, dos horizontes em mates ao fim do dia, driblando a dureza das coisas com a força de quem enfrenta o mundo, mas com a dor de quem nunca poderá compreendê-lo. Nela, os mesmos olhos delicadamente expressivos, talvez um pouco ansiosos, quase sempre misteriosos, em sua valentia insistente, a quem a força da natureza me fez tê-la como mãe. Imersa em tantos sentimentos só seus, agora revelados em um silêncio pesado, transparente. Era a guerreira mais feroz exposta em pleno combate: uma menina. Apenas uma menina. 

Os dias finais chegaram. A mãe, sentada no sofá, sem dizer nada, sem se mexer. Não se pode esconder-se das estações, das novas eras; não se pode rejuvenescer nem nascer novamente. É a vida que passa e nos leva atropelados, amarrados nessa existência estranha, confusos com alguma noção de tempo, até que que fiquemos pelo caminho. Fazer as malas, enfim, e partir. Talvez nunca mais veja os olhos da mãe daquele jeito, ou talvez fossem já os meus olhos, resignados, perdidos. Fundos em mim. O mundo parece cada vez menor, e é quando me dou conta da companhia eterna, dos olhos dela, carinhosos, que agora são meus. Se hoje é possível alçar vôo, é porque com ela aprendi a enxergar.

Acho que nenhum dos dois pode compreender direito a ligação que existe. Quando inventaram a palavra "profundo", falavam sobre o amor de mãe, certamente. E, quando a tarde cai sobre nossos ombros, me enxergo pequeno, com a mesma dúvida nos olhos, com a mesma força na vida; em mim, o mesmo silêncio, o mesmo tempo, o silêncio da mãe. Já não mais sentindo nem lembrando, mas dividindo a existência com ela, com o carinho mais honesto e o maior amor possível nesse universo. Até o retorno, até estar no colo de novo, até que seja a minha vez de cuidar dela, até que a vida permita desfrutar o que há de mais precioso e honesto, que é ficar ao lado da mãezinha.

Para que o mundo volte a girar em paz, o meu silêncio precisa reencontrar o dela. Nunca vou amar alguém como a amo; a melhor amiga, a mais bonita do mundo, a mais querida. Desde sempre, a minha pessoa preferida entre todas.

Feliz dia das mães, mãe. Te amo.

E feliz dia das mães para todas as tias e primas dessa família linda, que cultiva o amor.


***


Cidade maravilhosa

Por Rute Rossato

Pelo calendário oficial ainda é verão, mas hoje o dia em Porto Alegre é de outono. A chuva fina, a temperatura amena e o céu cinzento são a prova de que mais um verão terminou. O colorido do verão e as vozes alegres que há poucos dias ressoavam aqui estão muito distantes. Restou apenas a lembrança de um momento feliz em que a celebração serviu também como marco para uma nova etapa em nossas vidas. Agora, deste lado de baixo do rio Mampituba, é tempo de recolhimento e reflexão. Somos forçados a reconhecer que o ano realmente começou, ou seja, a vida voltou ao seu curso normal. As férias acabaram, as crianças voltaram para as escolas e o trânsito recuperou a sua costumeira insanidade. A cidade voltou a ser a mesma de sempre, mas para mim está diferente. Perdeu um pouco de seu encanto que foi subtraído pela Cidade Maravilhosa. Sim, o Rio de Janeiro não se contenta em ser uma cidade linda, com verão o ano todo. Essa cidade usa de seus encantos para roubar os nossos filhos, seduzir nossas meninas, hipnotizar nossa gente. E ainda assim, somos absolutamente corrompidos pela promessa de dias melhores, de sonhos realizados. Temos a esperança de que o sonho se transforme em realidade e que um dia possamos dizer “esta é uma obra de ficção, mas qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência.”

Meu filho

Por Aristeu Ferreira dos Santos

      Ser ou não ser é uma questão de ser e não do ser. E eu tentei sê-lo.
    A cada dia que passa vejo que são poucas as pessoas que se empenham por um ideal. A maioria vive por viver. É preciso ter ideal e ideal é um conjunto de ideias que impulsionam a vida, que dirigem a vida e que dão esse entusiasmo para viver.

    Sem ideal o homem não utiliza sua inteligência, sua vontade e sua liberdade. Fui e sou um idealista. E por isso, analisei, me esmerei, arregacei as mangas e fiz a minha parte. Tentei não ser um mero espectador. 

    A alegria de viver, a satisfação de viver surge daquilo que a gente é e tem. Meu filho Rui. Amei o que você escreveu para mim. Ao ler a sua mensagem vi e senti que sou muito mais daquilo que meus olhos veem. Sou muito mais daquilo que meus ouvidos ouvem, mais daquilo que minha mãos apertam, muito mais daquilo que sinto, percebo, que desejo e faço.

    Quero lhe agradecer e dizer que nem sempre os diplomas ensinam a viver, dão a sabedoria da vida, os gostos de viver, a alegria de viver.

    Em mim está a vida, em mim está Deus. Sou parte da vida total. Amei ter colocado você e seus irmãos nesse mar da vida, pois acredito ter sido uma gota nessa grande Vida.

    Obrigado por me amar.Eu também o amo.

***


Aristeu Ferreira dos Santos,  um homem singular

Por Rui Ferreira dos Santos

    Um homem singular, que na sua simplicidade possui um conhecimento amplo, vasto, que não se pode dimensionar, não se pode mensurar. Conhecimento que não se traduz em títulos, canudos, diplomas universitários, mas que encerra muitos deles, infinitamente superiores àqueles, que não se exterioriza em livros, textos, discursos, embora tenha origem, esse conhecimento vasto, em leituras várias de textos, discursos e livros. Livros, discursos e textos diversos, dos mais variados temas, leituras que já se denominou de dialéticas, "leituras dialéticas", dada a sua amplitude e constante questionamento.

    Um homem singular, de costumes simples, de aparência calma, que não gosta de muita exposição, introspectivo, mas ao mesmo tempo brincalhão, simpático.

    Sim, um homem singular. Todo esse conhecimento, vasto, incomensurável foi transmitido, também de forma singular - como é próprio dele -, ao longo do tempo, no dia-a-dia, na labuta diária do campo, da lavoura, da cidade, da pequena fábrica de tubos, da CAMOL, dos jogos de bolão, da própria casa, nos momentos de alegria e também nos momentos de infinita dor - essa dor que o tempo não dá conta e que de quando em quando volta, como agora - tudo isso foi transmitido aos seus filhos - não se questiona, aqui, a compreensão, o proveito ou não que os filhos tiveram desse aprendizado, desse exemplo de vivência. Certo é que o carinho que todos temos por ele é imenso, como ele próprio, singular, impossível de ser medido. De uma forma ou de outra transmitiu e transmite aos seus uma vivência que nos faz homens e mulheres, com a sua mesma estirpe, com ciência e consciência das coisas do mundo, do bem-viver, da importância da família, da união, da solidariedade, do trabalho, da amizade, do amor.

    Enfim, como eu disse desde logo, um homem singular. Ah, ia me esquecendo - por certo porque isto tem sido a tônica de toda a sua vida: retidão de caráter, constante, inabalável. Esse homem, singular, é meu pai. Obrigado por tudo. Obrigado por existir. Te amo.

   Caixas do Sul, 4 de dezembro de 2003.

Mais uma volta em torno do sol

Por Michele  Danielli dos Santos

Pai, e lá se vai mais uma volta em torno do sol. Parabéns!

São 55 anos e uns 110 Charles. Cada um deles movido por um desafio diferente, perseguindo sonhos diferentes. Todos eles bons com os números, com as letras, e com as pessoas. Todos desapegados das coisas, e das pessoas. Todos com paixão pela vida e compaixão pela humanidade. 

“Filha,
quando eu, aos 16 anos, parti para descobrir o mundo, tudo o que eu queria era ser um desconhecido, não aos outros, a mim mesmo. Queria sentir-me dono do destino. Onde quer que eu chegasse, ninguém estaria a minha espera. Nessa viagem, a juventude era toda minha bagagem.”

Pai,
a juventude não é mais toda a tua bagagem, mas ela é o que não falta e nunca faltará na tua bagagem, em qualquer que seja a viagem.

Parabéns pela vida tão bem vivida e por mais este ano que se completa! O meu amor e a minha admiração por ti são imensuráveis, incondicionais e infinitos.


***


Na bagagem, a juventude


Por Charles Ferreira dos Santos


      Na bagagem, apenas a juventude. Queria encontrar frases para descrever precisamente o que sentia, quando, ainda muito jovem, partia para conquistar o mundo. Tinha então 16 anos. Não existirão palavras para descrever, mesmo porque são inexatas as recordações. Ainda que fosse o mais longe possível, estaria sempre comigo mesmo. Fiapos de um adolescente inquieto. Fugia para lugar nenhum. Pensava que distanciava-me de mim mesmo. Sempre me encontrava nas paradas ocasionais dos ônibus interestaduais. Vai ser difícil escrever esta história sem vasculhar os esqueletos do passado.

      Cheguei num certo lugar. Onde quer que estivesse, ninguém estaria a minha espera. Senti o doce sabor do desconhecido. Um estranho em todos os lugares. O que precisamente eu queira, não sei dizer. Possivelmente, seria isso: sentir-me dono do destino. 

       Pernoitei num certo bordel. Um menino, em seus 14 anos, empurrava um senhor na cadeira de rodas. Com a mochila ainda às costas, entabulei conversa. 

       Fumei o último cigarro. O expediente daquele sábado havia terminado. Não restaram moedas para o ônibus. Teria que fazer a pé e não era nada perto. A semana tinha sido dura. Fiz a matrícula no colégio e pretendia retomar os estudos. Lembrava ainda das palavras de meu pai: “estude filho”. Não sabia se o amava. Não sabia de nada. Sentei por ali, em algum lugar. Os circulares passavam por mim. Carros, em alta velocidade, levavam pessoas. Cansado, não tinha mais nenhum cigarro. Então, deitei-me ali para descansar. Sonhei. Foi um sonho bom. Minha mãe sorriu para mim, e pegou-me no colo. Encolhi-me e senti o seu calor. Gostaria de não ter acordado. Prossegui caminhando. Meia tarde cheguei. 

      Tudo o que eu queria era ser um desconhecido, não aos outros, a mim mesmo. Ia percebendo que era uma tarefa impossível. Mesmo assim, fui tentando. Um adolescente só conhece as leis que já provou. Eu queria desafiar o futuro. E assim fui seguindo meu caminho. Cada passo em falso que dava era um novo tijolo na estrutura que um dia talvez fosse construir.

      As marcas do passado teimam em não cicatrizar. Fui aprendendo a conviver com elas; no entanto, foram sempre feridas mal curadas, não havia como ignorá-las.

      Prossegui. Nessa viagem, a juventude era toda minha bagagem.


domingo, 12 de maio de 2013

Para minha mãe

     

      





     
     Tinha então dez anos. Cursava a terceira série do primário. Do intervalo eu sempre voltava suado, exausto. Naquela tarde, ainda ofegante, quando fazíamos fila para retornar à aula, a professora me tirou da fila, e disse que fosse para casa, mas fosse direto para casa. Morávamos muito próximo do colégio de freiras. Logo avistei que muitas pessoas se aglomeravam em torno de minha casa. Minha mãe tinha partido. Ela partiu e deixou um vazio, um vazio que até hoje me machuca. Fiz 12 anos, e depois 22, agora, recentemente, 55, e não consigo superar a perda de minha mãe. Entretanto, o pouco tempo que me foi permitido conviver com ela foi o bastante para amá-la sempre, foi o bastante para entender o quanto uma mãe é importante na vida de uma pessoa. Ei, você, que tem a sua, antes de um presente, beije-a, hoje, no seu dia, e em todos os dias.

O inverno outra vez


      O inverno outra vez. Fortes indícios que nova estação se aproxima - menos três graus na madrugada e um lindo dia de sol pela manhã, como se a natureza propusesse uma compensação. As estações vêm e vão e o rompimento do asfalto na rodovia continua lá. A qualquer hora pode acontecer o pior. Quem por ali passa corre risco de vida, ainda que conheça o trecho, que dirá aquele que passa pela primeira vez. Tímidos sinais de obra, algumas cargas de pedra, mas a sinalização é precária. Proximidades da Cachoeira do Avencal, trecho Urubici - Cruzeiro (São Joaquim).

domingo, 5 de maio de 2013

É sexta-feira...



I


Alguns dias são sempre iguais. Até a sexta-feira é igual em sua diferença. Esta sexta, em especial, é diferente das diferenças de outras sextas. Se é que eu consegui me explicar.


II


Vou por outro caminho. O despertar de hoje não abrigava a expectativa de, à noite, encontrar você. Abriu um belo dia de sol. Um gato cruzou a rua, um senhor, na casa dos 80, se equilibra em sua bengala. Nenhum barulho de carro. Apenas um eco insistente a me lembrar que você não viria.


III


As florzinhas da míni-érica, empurradas pelo vento, faziam fila na porta, como pedindo permissão para entrar. Algumas, sem-cerimônias, já estavam lá dentro. Tudo é tão igual na beleza da simplicidade, mas nesta sexta tudo parece sem graça.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Cidade maravilhosa

              Por Rute dos  Santos Rossato
         
            Pelo calendário oficial ainda é verão, mas hoje o dia em Porto Alegre é de outono. A chuva fina, a temperatura amena e o céu cinzento são a prova de que mais um verão terminou. O colorido do verão e as vozes alegres que há poucos dias ressoavam aqui estão muito distantes. Restou apenas a lembrança de um momento feliz em que a celebração serviu também como marco para uma nova etapa em nossas vidas. Agora, deste lado de baixo do rio Mampituba, é tempo de recolhimento e reflexão. Somos forçados a reconhecer que o ano realmente começou, ou seja, a vida voltou ao seu curso normal. As férias acabaram, as crianças voltaram para as escolas e o trânsito recuperou a sua costumeira insanidade. A cidade voltou a ser a mesma de sempre, mas para mim está diferente. Perdeu um pouco de seu encanto que foi subtraído pela Cidade Maravilhosa. Sim, o Rio de Janeiro não se contenta em ser uma cidade linda, com verão o ano todo. Essa cidade usa de seus encantos para roubar os nossos filhos, seduzir nossas meninas, hipnotizar nossa gente. E ainda assim, somos absolutamente corrompidos pela promessa de dias melhores, de sonhos realizados. Temos a esperança de que o sonho se transforme em realidade e que um dia possamos dizer “esta é uma obra de ficção, mas qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência.”

Por acaso em algum lugar


Cinco milhões de pessoas, ou mais, se movem todas as manhãs. Ninguém, porém, se moveu para esperar Alex, nem Alex avisou que estaria chegando. Pegou a pequena bagagem e se infiltrou nos becos. Eram cinco ou quem sabe seis da manhã, por aí, caminhava ao lado de um grande muro todo pichado. Os carros ainda mantinham os faróis acesos e passavam em alta velocidade. Uma gangue cerca Alex e um deles aponta uma arma reluzente para sua cabeça. Outros dois saqueiam a bagagem e levam uma jaqueta, um tênis, duas calças jeans. Ninguém para, ninguém viu. Algo eles não levaram, mas quebraram: o encanto que teria atraído Alex ao Rio de Janeiro. Nem bem havia chegado e já fora apresentado ao verdadeiro cartão-postal da cidade, sem retoques.

Primeiro vem a fome, depois a inanição. Entre os dois pontos, o mundo imaginário se funde com o real. Nesse mundo tudo é possível. Não existem as leis da física, nem as leis dos homens, nem as leis de Deus.

II

Um mundo paralelo

Escorou-se no portão de um colégio. Era estranho o que seus olhos viam. Um menino correu em direção à saída e jogou-se nos braços de sua mãe, que o esperava. A criança, espremida pelo abraço, olhou na direção de Alex. O estranho é que o menino nos braços daquela mãe era o próprio Alex. Aquele cheiro era-lhe peculiar, o cheiro do afeto que um dia teve. Apertou com mais força o ombro que o sustentava, deslizou levemente seu nariz pelos cabelos cacheados de sua mãe. Fechou os olhos, como se assim fosse possível prolongar indefinidamente aquele estado. Se faltasse uma prova para a existência do paraíso, esse momento bastava.

                  Vertigens o faziam girar sem sair do lugar. Caiu, desfaleceu. Pessoas indiferentes desviavam o minguado corpo encolhido no chão. Passaram-se horas. O pronto-socorro o transporta para uma ala emergencial. Recebe tratamento: soro, água e uma sopa.

III

Folhas secas de outono

Era um domingo de futebol. Naquele lugar é preciso morrer de paixão por um time e torcer por uma escola de samba, se não for assim, você sempre será um turista, um estranho, um deslocado. Empregou seus últimos trocados num ônibus urbano. O empilhamento humano ficava para trás. Foi até o fim da linha. Ali parece que existia um pouco de paz. A aura que emanava dali sintonizava com seu vago olhar. Um clima de bairro um pouco familiar. Crianças brincavam no parque. As folhas secas de outono davam um toque de acolhimento, de aconchego - alguma sutil lembrança de um lar. Era um convite a Alex para estancar seus passos desorientados. Esticou seu corpo cansado sobre a grama. A sensação de fome só aperta nos primeiros dias, depois o que se sente é apenas fraqueza. E é aí que sua mente se solta e voa. Ninguém ligava para Alex, era uma cena comum. Todos os dias havia pessoas assim. Corpos que se deixavam ficar.

IV

            Aquela bagagem estava sugando suas escassas forças. Mais por instinto de sobrevivência do que por desapego, abandonou-a em algum lugar. Assim, sentiu-se ainda mais leve. Um homem sem dinheiro, sem endereço e com fome, numa sociedade em que as pessoas valem pelo que possuem, não é digno de ser humano. Entrou na fila de uma vaga de emprego. Descreveu seus últimos dias. Foi dispensado. Não tinha mesmo nenhuma esperança de ser contratado, mas não desistiu.

V

Caía a tarde mais uma vez. Precisava encontrar um lugar para repousar. Como se fosse uma ilusão desértica, a visão ofuscava os dizeres daquela placa: “Contrata-se”. Nem sabia mais se seria uma miragem, ou de fato estaria lá. Por fim, andou em sua direção. Contratado. Começaria dia seguinte. Precisava dizer que não teria onde passar a noite. A necessidade é o remédio para todos os orgulhos. Arranjaram ali mesmo um lugar para ele ficar. 
VI

                  Décadas depois voltaria ao Rio. Muitos meninos haviam tentado a sorte nesse tempo. Alguns conquistaram o mundo; outros, bem, um dia chove, outro dia faz-se sol, e quanto a Alex, ele havia encontrado a si mesmo. Nem fez questão de olhar os pontos turísticos. Talvez tivesse entendido que aquelas belas imagens, o sambódromo e o maracanã, apenas desviavam o foco do desequilíbrio social. Era muito cedo e alguns poucos caminhavam à beira mar. Infiltrou-se em alguma rua. Havia ali um cheiro impregnado de esgoto. Um carro possante estacionou num hotel suntuoso. Mendigos ainda dormitavam na calçada. À medida que a hora avançava, o movimento recrudescia. Um engavetamento, a sirene intermitente da polícia, era o ponto alto do rush. 


terça-feira, 19 de março de 2013

Outros tempos nunca serão os anos 70


Tudo ainda está tão nítido: a infância, a adolescência, o primeiro amor. O olhar para trás já é um prenúncio de que alguma coisa mudou. Bate às vezes a nostalgia. Nunca ninguém avisou que certas coisas não voltariam jamais.

Nem ainda deu tempo de se adaptar a uma nova tecnologia e outra já está tomando o lugar desta última. Por vezes, ainda relembramos os velhos discos de vinil e as fitas cassetes. Ninguém escreve mais cartas. Cartas naquele formato: papel, envelope, selo, correio. Não se sabe se a vida acelerou nos últimos tempos, ou se sempre foi assim em todas as gerações. Ocorre que agora é a nossa vez. Nossa vez de sentir que o tempo passou.

“Você ainda nem chegou a seu destino, seu perfume ainda está aqui, posso quase ver seu olhar. Não deve ser saudade, a saudade não surge assim tão de repente. Acho que é amor”. Cartas demoravam três dias para chegar e não eram escritas, eram sentimentos derramados naquele papel em branco.

                   As canções dos anos 70 tinham letras especiais, e as músicas eram de um romantismo inocente. Não há como não sentir saudades. Muitas marcaram a vida para sempre. Claro que não eram melhores que as de outros tempos, mas qualquer outro tempo nunca serão os anos 70, o tempo em que éramos tão jovens.

Não vimos o Festival de Woodstock passar - estávamos distantes demais das capitais -,   nem a onda hippie, mas acompanhamos a novela Dancin’ Days. E nos embalos de sábado à noite, na discoteca, a vida era um festival de ABBA, Bee Gees e John Travolta. Suave era a noite e simples era a vida.

                  Cinquentões.

domingo, 17 de março de 2013

Alguém bateu à porta

     Ganhou um grande prêmio da Caixa. Um fator externo que poderia interromper o ciclo de pobreza, que vinha se perpetuando por gerações.Vivia submerso na mais profunda miséria. Jamais imaginaria que o futuro iria lhe presentear com rara oportunidade.

    Enquanto esse dia não vinha, a rotina se arrastava em meio à penúria. Só quem olhasse de fora enxergaria as mazelas daquele submundo. Quem está ali dentro nada vê, não há como olhar com os olhos de quem pertence a outro mundo. E assim o ciclo se reproduz. Quatro pessoas dividiram o pouco que tinha naquelas panelas. Era um domingo qualquer. Lurdinha e Vilson, o casal; Thais e Vilma, as filhas. As moças de 18 e 19 anos haviam abandonado os estudos, ainda antes de concluírem o ensino médio. Ninguém na família nunca havia estudado, e assim sucedeu com elas. Alguém bateu à porta. Era Vadão. Trazia bebida e uma maço de cigarros. A miséria as pessoas dividem, a riqueza as pessoas negociam. Vadão era um vizinho divertido, fazia planos mirabolantes, principalmente depois que bebia, mas nunca os colocava em prática. Aquele dia também foi assim. Lá pelas tantas outra pessoa bate à porta. Era a esposa de Vadão com seus três filhos pequenos. Queria saber por que Vadão demorava tanto para chegar com as coisas, as crianças estavam com fome. Mas Vadão tinha comprado cachaça e cigarro e agora não tinha mais dinheiro. Sua mulher chorou e esbravejou e destratou a família de Vilson. Ninguém quase nem ligou para Tereza. Ali agora tudo era alegria, pelo menos enquanto o efeito da bebida durasse.

    A segunda-feira seguinte marcaria suas vidas para sempre. Vadão, o fazedor de planos, havia acertado sozinho na mega-sena.

    Mudou-se para um bairro de classe média, longe de seu ninho, longe de seu habitat, mas seguidamente era visto no subúrbio de suas origens. Transitou por algum tempo entre esses dois mundos. Era domingo. Diferente de outros tempos, agora ele era celebridade, estacionou seu carro. Tinha ajudado muita gente, doado casas, carros, móveis, o que lhe pediam. Aquele dia beberam, beberam até não dar mais. Por algum tempo Vadão tentou ser rico, e ser rico é diferente de ter muito dinheiro. Ele não tinha classe, não tinha o trejeito, não tinha o esterótipo de rico, por isso era motivo de chacota, mas enquanto pudesse ser explorado, ainda o suportariam. Era convidado para eventos, mas o que queriam era seu patrocínio, era seu dinheiro. Lutando para ser aceito, foi cedendo aqui e ali. Vadão não conhecia as artimanhas do mundo dos negócios.

    Deixou a esposa e amancebou-se com Thais, a filha de seu amigo. Fizeram da vida uma festa. Sua mulher moveu uma ação de pedido de alimentos e partilha de bens. Em pouco tempo seus investimentos societários começaram a ruir, acumulando prejuízos em vez de gerarem lucros. Seus projetos tinham a consistência de um castelo de areia. Não foi longe para seu capital virar pó.

    Por ironia do destino, uma das pessoas a quem fez doação cedeu-lhe um cubículo aos fundos da casa. Era segunda-feira, seis anos depois daquele dia de sorte. Nem no auge, muito menos na depressão, cuidou da saúde. Essa negligência cobraria seu preço em seu momento mais agudo. Tossiu, era um murmúrio que vinha do pulmão, o efeito acumulado do cigarro e da bebida por longo tempo. Estava sozinho. Alguém bateu à porta. Era o Oficial de Justiça. A pensão dos filhos estava atrasada, havia um mandado de prisão contra ele.

segunda-feira, 11 de março de 2013

A Surfistinha que não deu certo

















Surfar nas ondas de um sucesso é fácil, difícil é fazer um sucesso acontecer. Se o veneno do escorpião vende, então produzam veneno. É a velha política do menor esforço. É danado escrever sob pressão, ainda mais quando o editor já lhe impõe o título, no caso, “A Surfistinha que não deu certo”, e de quebra determina um prazo - urgente. Bem que fui aconselhado pela família, pelos amigos, por quem quer que comentasse: “Nunca deixe seu emprego só para escrever, é temerário”. E eu, teimoso como uma mula, obviamente não dei ouvidos. Não consigo um troco nem mais para a pinga.

 Era jovem, bonita, corpo atraente e tinha um escorpião tatuado no seio. No início, mesmo o trampo sendo caro, sua agenda estava sempre lotada, dava até para escolher e dispensar alguns. Algo começou a dar errado naquele dia em que experimentou cocaína, que um destemperado lhe ofereceu.

“Eu sei que é urgente, estou fazendo, está saindo, está ficando uma eme, mas está saindo. Não me ligue mais, a hora que ficar pronto mando por e-mail”. Era o editor, eu devia tê-lo mandado...

Depois daquele dia, nunca mais seria a mesma. O preço foi caindo, não havia mais agenda. Se não estivesse drogada, estaria de ressaca, e a grana começou a faltar. Cremes, roupas, perfumes, nem sombra do que foram um dia. Luna estava muito mal, mas não o suficiente que não pudesse ficar pior.

Horas de espera e então um cliente. “Não quero transar, só conversar, preciso escrever um conto. Fale-me de sua experiência, conte-me alguma coisa inusitada”.  “Não vai dar, hoje estou travada, nem conversar posso, procure outra”.

Alô, editor, não vai dar, não trabalho sob pressão, procure outro”. Pô!

domingo, 10 de março de 2013

Cartas envelhecidas















“Você é criativa em suas cartas, tem fino senso de humor. Um dia simula um  beijo, faz uma marca de batom no papel. Leva-me a imaginar o contorno de seus lábios, quase tocá-los. Outro dia você põe seu perfume, posso degustar seu cheiro. E eu não tenho nada disso. Tudo parece turvo em meu caminhar. Ah, como você me faz bem, Alice. Será que um dia eu conhecerei você?”. Jair.

Uma praça qualquer em algum lugar. Por ali circulam muitas pessoas. É um lindo recanto arborizado, bem cuidado, gostoso para ficar. Uns caminham, outros correm, alguns levam seus cachorros para passear. Outros, no entanto, depositam cartas.

Jair passava ali, por acaso. O que estariam pensando essas pessoas? E se pudesse ler os seus pensamentos? Sua mão toca em algo, fazendo-o retornar à realidade. É um envelope. Está escrito: “A quem encontrar”. Abre e lê, atenciosamente.













A carta fala da vida e dos caprichos do coração, das emoções, de frases soltas, de coisas sem sentido que fazem todo sentido. Um quê de solidão suspenso no ar. E deixa uma proposta lá no final. Era um convite a quem a encontrasse - que escrevesse a resposta e depositasse embaixo da pedra que fica ao lado do banco, se tivesse vontade. Assinada por Alice, e era só.

Uma correspondência intensa entre eles teve início. Falavam de suas vidas, de seus anseios. Criaram fortes laços de amizade. Nunca, porém, falavam de amor.

Um dia, Jair propôs um encontro, mas não seria para já, seria no dia de aniversário de 20 anos da primeira carta, antes do pôr-do-sol, naquele lugar, aconteça o que acontecer deveriam estar lá. Nem queria resposta, no dia marcado saberia se aceitou.

Trocaram cartas por algum tempo, mas houve um período em que a troca cessou. Nem Alice nem Jair escreveram mais. Um dia, porém, retomaram o velho hábito.

Enquanto isso, cada um vivia seu mundo real. Alice teve amores, desamores, companheiros de jornada. Casou e foi feliz por um tempo. Jair permanecia sozinho, sozinho com aquelas cartas, as cartas que vinham de Alice.

O dia marcado chegou. O tempo havia passado. Jair chegou cedo. A praça estava ali, com algumas mudanças, mas ele tinha envelhecido, não o envelhecimento da idade, mas o da alma.  O que tinha feito em todo esse tempo? Nada, ou quase nada. Algo como se tivesse andado o tempo todo à procura de sua metade, e, tendo encontrado, não pudesse tocá-la.

Alice morava numa cidade bem próxima. Estava chegando, tudo transcorria bem. Entrou na rua da praça, o momento do encontro se aproximava.

No local marcado, houve um incidente. Jair ali sentado, esperando Alice, foi atingido por uma bala, perdeu bastante sangue. O socorro chegou. Quando se preparavam para transportá-lo, alguém grita ao longe: “Espere, espere”. Era Alice que chegava naquele momento. Olhou cartas espalhadas no chão. “Então era ele!”. “A senhora o conhece?”  Ainda a caminho do hospital, não deu mais para Jair, havia perdido muito sangue.

Recolheu todas as cartas e voltou para casa. Havia algo que jamais revelaria a alguém, nem mesmo a ela, se fosse possível. Aquele homem que amou a distância, aquele missivista desconhecido, foi um de seus companheiros, durante certo tempo. Havia rompido com ele, e só agora ligava os fatos. O tempo em que as cartas interromperam foi exatamente o tempo em que estavam juntos.

Tudo parece mais claro agora. Lembra que sofreu muito naquele adeus. Não sabia lidar com o temperamento tristonho, recolhido, um tanto amargurado de Abel - seu nome real. Foi difícil romper, mas romper era preciso. Tinha muito medo de cair junto naquele vazio, no vazio que vivia Abel. Mas, o que é o amor, se pergunta agora? O amor não pressupõe estar junto. Ela amava alguém a quem conhecia somente por meio de cartas. Ela amava Abel, mas preferiu romper. Então, insistia, o que é o amor?  Queria encontrar a pessoa ideal, mas a pessoa ideal também é imperfeita. Talvez ninguém possa ajudar Alice, mas ela teve uma chance de ajudar Abel.

Releu a última carta que havia encontrado no parque: “Quero dar a você o que há de melhor em mim”. Jair.













Jogou todas as cartas num velho baú. Lacrou. Quem sabe o tempo desse conta daquela ferida aberta. Não considerou que o tempo é implacável. É ele que escolhe a ferida a curar.

Não havia mais jeito. Era impossível esquecer. Sabia que jamais seria amada com tamanha intensidade. Um amor havia escorregado entre seus dedos por duas vezes. Abriu o baú, ali estava sua vida, um amontoado de cartas envelhecidas.

sábado, 9 de março de 2013

Ninguém contrata poetas











Estava em cartaz uma peça intitulada Incidente em Antares, apresentada pelo Grupo Cerco. Uma extensa fila se formava próxima ao portão central. Aguardavam o sinal para ocuparem seus lugares nas acomodações do teatro. Um cara anuncia: “Aqui temos um livreto de poemas de minha autoria, o título é Palavras ao Vento. Apenas dez reais, quem vai aproveitar? Palavras ao Vento, dez reais. Juntei palavras, compus frases, alinhei rimas, Palavas ao Vento. Ei, você, veja, um livro de poemas, apenas dez reais”.

Franzino, era sempre renegado nas partilhas de futebol. Desajeitado, não calibrava a força no ping-pong. Era um menino contemplativo. Não interagia, mas observava. Tinha um carisma, digamos,  tímido. Um Jeito diferente de olhar. Desde muito cedo, pegou gosto em manejar palavras, escrever pequenas histórias, estruturá-las em versos. A rimar aprendeu também muito cedo.

Seus amigos seguiram caminhos diversos, formaram-se, profissionalizaram-se, ganharam a vida. Mas ele preferiu as letras, a arquitetura das palavras. A vida mostraria a Teócrito que escolhera um caminho poético. Jamais veria numa porta de fábrica: “Há vagas para poetas”.

Só um poeta vê poesia em todo lugar. Um poema não compra uma viagem para Liverpool, nem rende dividendos na bolsa de valores. Seus amigos viajavam e investiam na bolsa, mas Teócrito apenas fazia poesia. E Teócrito não era triste por isso, nem alegre, Teócrito  era um poeta, e um poeta vê poesia em todo lugar.

Um dia Teócrito descobriu que precisava pagar suas contas, mas ninguém contrata poetas. Então Teócrito teve uma ideia: venderia seus próprios poemas.

“Ei, apenas dez reais, Palavras ao Vento, de minha autoria”.

quarta-feira, 6 de março de 2013

O morador de rua que devolveu 20 mil*





                          






“Aqui está minha grande oportunidade”, bradou Zeca. “O que é?”, perguntou Joana, sua mulher. Zeca havia encontrado um saco com notas de 10, 20 e 50 reais. Estava jogado atrás do abrigo da parada de ônibus. Mais tarde se confirmaria a importância de 20 mil ao todo.

O casal era morador de rua havia já algum tempo. Oriundos da região do Agreste, deixaram os pais e vieram tentar a vida na cidade grande. A esperança de uma vida melhor pouco durou, logo foi se desfazendo diante das dificuldades de encontrar trabalho. Sem qualificação, mal sabendo ler e escrever, não restou outra saída senão morar na rua.

E assim, aquilo que um dia foi esperança agora é um monte de trapos velhos, de caixas de papelão, de miséria. Embaixo daquele viaduto, ouvindo o zunir dos carros que passam em alta velocidade, ficam durante a noite, durante o dia, nos finais de semana, no natal, na virada de ano, porque ali é a casa deles.

Chegaram ao último estágio da miséria, da miséria material. Mas isso parece que não os incomodava. Zeca e Joana, apesar de tudo, eram de uma riqueza que já não mais se vê por aí. Uma riqueza chamada honestidade.

Pegou aquele saco de dinheiro e seguiu em direção à Delegacia de Polícia. Sua mulher, calada, o acampanhou, assim como o acompanhava em todas as ocasiões. Entregou o dinheiro à polícia e voltaram para debaixo do viaduto. A polícia já tinha registro de um furto em um supermercado nas redondezas. Na perseguição, os ladrões se livraram do dinheiro.

Um carro de reportagem encostou, outro carro de reportagem chegou. Zeca e Joana são fotografados, entrevistados, vão parar no jornal da noite. Aquele foi um dia cheio. Os repórteres já foram embora, o momento de celebridade passou. Amanhã mil fatos serão notícias, e o ato do Zeca já terá sido esquecido. E os trapos e caixas de papelão e a vida do Zeca e da Joana estarão ali debaixo do viaduto.

“Zeca” - exclama Joana, olhando com cara de quem medita -, “eu não entendi uma coisa, quando você achou o dinheiro, por que você disse que era sua grande oportunidade?”. “Joana” - Zeca falava pausadamente -, “se minha mãe fosse viva e ficasse sabendo, iria se orgulhar de mim. Eu sempre quis que minha mãe se orgulhasse de mim. Eu quase tenho certeza que minha mãe diria: esse é meu filho”.

* Baseado em fatos reais.

terça-feira, 5 de março de 2013

Tente outra vez





  








Havia tentado largar o fumo outras vezes. Muitas outras vezes. Inúmeras vezes. Nem mais saberia dizer quantas vezes. Uma sucessão de fracassos que afundavam cada vez mais sua autoestima. Sentia-se um pedaço de gente. Meio homem, meio nada.

A nicotina, sua mordaz companheira, já levou muitas vidas, abreviou muitas histórias. Mas o pior que ela faz é pigarrear as entranhas de sua presa.

Um fumante não é um viciado, é um doente. Um doente que precisa de cuidados especiais. Só outro produto químico pode combater com eficiência a dependência química. No entanto, ele não pensava assim. Ele se sentia fraco, se sentia menos, se sentia incapaz. Nunca se considerou um doente à espera de ajuda.

Não era o único a pensar assim. Falavam que dependia só dele, que o que lhe faltava era vontade, persistência, vergonha na cara. Uma ideia repetida 333 vezes se torna verdade. Todas acreditavam nisso, e ele também.

                  Aquele com o isqueiro na mão, ali vai ele tentando outra vez.