segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

E chove em São Joaquim












Nuvens esparsas. Se havia possibilidade de chuva, era uma chance remota. Dispostos a cumprir o plano, ultimamos detalhes: protetor solar, água, apetrechos de viagem - tudo pronto.

E a Clau olhou para o céu. “É melhor adiarmos, deve chover em poucos minutos. Aquela nuvem está carregada”, disse, precavida. “Eu conheço a região, aquela nuvem está carregada, mas está longe daqui, está sobre São Joaquim, lá deve chover, concordo”, repliquei.

Urubicicletamos. Uma nuvem sobre São Joaquim não haveria de abortar nossos planos, já que estamos a pelo menos 60 km.

Quinze minutos depois, uma bomba d’água cai sobre Urubici. A Clau, pedalando um pouco à frente, reduz a velocidade, permitindo minha passagem, no momento em que emparelhamos, muito séria e encharcada, retruca: “e chove em São Joaquim”.

                   Horas depois, enquanto jantávamos, propus um brinde e falei: “e chove em são Joaquim”, aí ela não conteve o riso.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Cuba, novembro de 2012






















De fato, estive em Havana nos últimos dias de 2012. Pude constatar a dura realidade do cubano. Como eles próprios admitem: "É uma situação complexa, se o sistema serviu para nossos avós, para nós já não se pode dizer o mesmo". Quem somos nós, estrangeiros, para julgar esse povo? Pode-se sentir o ar de mudança nas ruas. Os pequenos negócios - saída honrosa para muitos - vão se multiplicando pelas esquinas de Havana. Há um sopro de esperança, mas por detrás de muitos olhares, há sombras de dúvidas e incertezas. Por isso tudo, amei ter conhecido Cuba e seu povo.

A Clau, a Bárbara e a Camila, companheiras de viagem, expressavam, em seus olhares, admiração e curiosidade. Quão legais foram por todo o caminho, quão divertidas. Uma parte do encanto, certamente, deve ser creditada às parceiras de viagem.

O cubano é um ser solidário, festivo, mas antes de tudo, resignado. O espírito da revolução - muito além das figuras do Chê,  nos muros da cidade, muito além das frases de efeito em favor da revolução - não consegue mais esconder a realidade. Porém, nem tudo foi em vão. O sistema mostrou ao mundo que é possível a existência de um Estado Social, uma garantia estatal do mínimo existencial, pelo menos, se a desigualdade social não for possível eliminar.

Viajar é bom; viajar e conhecer uma cultura e um sistema totalmente diversos do nosso é algo que recomendo. Não voltei mais socialista do que já era, mas voltei ciente que é possível, sim, um Estado Social com mais responsabilidade. É possível, sim, investir pesadamente em educação, não como plataforma demagógica, para angariar votos,  mas como política de Estado.

Um povo é sua história.

Hasta la victoria, siempre.

A lida no campo



No campo, a tarde parece cair mais lentamente. Meia verdade, talvez; o viver é que é mais descansado, e aí tem-se essa ligeira ilusão.
Apesar da idade, ainda conserva a destreza no manejo das ferramentas. A diferença entre outros tempos é que agora labuta solitário, ruminando consigo mesmo as coisas da vida.
Dos filhos que criou, um está na cidade, trabalhando; outro, deus sabe lá por onde anda, foi-se para o estrangeiro. A esposa, tal como os filhos, preferiu o emprego da cidade ao lavoro da roça - não a culpa. Perdeu, assim, a companhia de todos.
Lembra, com certo orgulho, que da lavoura sustentou o estudo dos filhos. É um orgulho triste, pois sabe que não consegue acompanhar suas filosofias. Quando jovem, não teve a mesma oportunidade, mas não se queixa.
Já se fartou de ouvir sobre a nobreza de seu trabalho. Parece cansado. Seu andar retesado não é mais o mesmo, nem seu olhar, nem mesmo sua rudeza; volta e meia deixa escapar pequenos ais em meio a lembranças.
Por fim, o sol se pôs mais um dia. O cão, companheiro fiel, já sabe que são horas de voltar para casa.  Vagando seu olhar no infinito, procura entender por que ficara sozinho, se o seu trabalho é assim tão nobre.



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O último serrano


O último serrano

                   Dedilhou a saideira. Ninguém ali naquela noite imaginaria que fora a última modinha de sua viola. Havia bebido algumas, é verdade, mas estava de carona - ainda bem. Foi deixado em casa, era para ser a hora de encerrar a noite - talvez pouco passava das duas da manhã; era hora de dormir, sim, menos para o Pedrinho Borguezan*.

                    Fez roncar sua moto e pegou a estrada. Tinha muita noite pela frente, ora essa! Pegou a estrada do seu fim. A poucos metros de sua casa, chocou-se com um ciclista, o capacete se desprendeu. Nunca ninguém mais ouvirá sua viola. Um violeiro saía da vida para virar lenda.


                     As coisas mudaram em Urubici. Ontem, uma lenda chamada Pedrinho Borguezan tocava simplesmente por prazer. De sua viola saíam velhas cantigas; das montanhas, soprava o vento gelado; das pessoas ao seu redor, causos, risos, calor.

                     As coisas mudaram em Urubici. O último genuíno serrano, agora lenda, não está mais aqui, partiu para outra dimensão, se tiver. Não se enganem, não é apenas mais um nativo que se apaga, é a última página de uma era que vai ficando para trás.

                     Os turistas - que sejam bem-vindos - trouxeram novas culturas de fazer negócios. O velho jeito serrano de tocar canções pelo simples amor à amizade e à musica deixou esta terra com a lenda que perdeu a vida naquele acidente.                      Você pode olhar as belezas de Urubici, mas antes adquira o ticket de acesso. É a nova maneira de fazer negócios. Verá a beleza natural - isso tem em abundância, ainda -, mas o espírito serrano - esse nunca esteve à venda - ficará apenas na memória de quem viveu o tempo de Pedrinho Borguezan.

                      A arte serrana de levar a vida juntou-se ao violeiro: virou lenda. Nenhuma beleza de Urubici deixará de ser explorada. O jeito de ser serrano ainda resistirá por algum tempo. Sentiremos saudades.

                       A alma serrana ficará vagando na geografia de Urubici. Os novos tempos estão aí: as belezas naturais são um mercado. O Pedrinho Borguezan foi o último serrano.


* Antonio Pedro Borguezan (1958-2012), Vila Santo Antonio, Urubici, SC. Profissão: músico, pintor nas horas vagas.

Na bagagem, a juventude

      Na bagagem, apenas a juventude. Queria encontrar frases para descrever precisamente o que sentia, quando, ainda muito jovem, partia para conquistar o mundo. Tinha então 16 anos. Não existirão palavras para descrever, mesmo porque são inexatas as recordações. Ainda que fosse o mais longe possível, estaria sempre comigo mesmo. Fiapos de um adolescente inquieto. Fugia para lugar nenhum. Pensava que distanciava-me de mim mesmo. Sempre me encontrava nas paradas ocasionais dos ônibus interestaduais. Vai ser difícil escrever esta história sem vasculhar os esqueletos do passado.

      Cheguei num certo lugar. Onde quer que estivesse, ninguém estaria a minha espera. Senti o doce sabor do desconhecido. Um estranho em todos os lugares. O que precisamente eu queira, não sei dizer. Possivelmente, seria isso: sentir-me dono do destino. 

       Pernoitei num certo bordel. Um menino, em seus 14 anos, empurrava um senhor na cadeira de rodas. Com a mochila ainda às costas, entabulei conversa. 

       Fumei o último cigarro. O expediente daquele sábado havia terminado. Não restaram moedas para o ônibus. Teria que fazer a pé e não era nada perto. A semana tinha sido dura. Fiz a matrícula no colégio e pretendia retomar os estudos. Lembrava ainda das palavras de meu pai: “estude filho”. Não sabia se o amava. Não sabia de nada. Sentei por ali, em algum lugar. Os circulares passavam por mim. Carros, em alta velocidade, levavam pessoas. Cansado, não tinha mais nenhum cigarro. Então, deitei-me ali para descansar. Sonhei. Foi um sonho bom. Minha mãe sorriu para mim, e pegou-me no colo. Encolhi-me e senti o seu calor. Gostaria de não ter acordado. Prossegui caminhando. Meia tarde cheguei. 

      Tudo o que eu queria era ser um desconhecido, não aos outros, a mim mesmo. Ia percebendo que era uma tarefa impossível. Mesmo assim, fui tentando. Um adolescente só conhece as leis que já provou. Eu queria desafiar o futuro. E assim fui seguindo meu caminho. Cada passo em falso que dava era um novo tijolo na estrutura que um dia talvez fosse construir.

      As marcas do passado teimam em não cicatrizar. Fui aprendendo a conviver com elas; no entanto, foram sempre feridas mal curadas, não havia como ignorá-las.

      Prossegui. Nessa viagem, a juventude era toda minha bagagem.