quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Aquela música

                                          

Aquela música é um soco por dentro,

é um prédio implodindo,

é a explosão de uma bomba.

Quando toca aquela música,

rasga a saudade,

fere o peito.

O vento das oportunidades



                    


                  Em toda viagem é preciso checar a bússola, conferir a direção. Se preciso for, girar as velas. Não é por acaso que o leme se encontra na cauda. Os pontos de referência é que darão o norte. 

                A vida não passa, atropela. Depois da largada, tem a velocidade de um tiro. O tempo é escasso e inelástico. 

                Quase ninguém escapa das armadilhas. Não existe um manual de instruções. Vai-se aprendendo pelo caminho. Voltar no tempo, não; mudar o rumo, sim. Cada qual é o capitão de seu veleiro. As fronteiras do mundo cada um expande à medida que avança. 

               A vida é um velejar, por isso é preciso aproveitar o vento - o vento das oportunidades.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O cara que queria ser escritor


                                 


                   Já havia feito de tudo um pouco em sua vida. Um desejo latente pairava abandonado nas entrelinhas de seu passado. Nos últimos dias, uma ideia fixa começava a inquietá-lo. O sonho de aprender a arte de escrever retornava agora com mais intensidade. Como se o vento daqueles dias tivesse varrido a poeira acumulada sobre a agenda de seus sonhos. Sentiu que o momento havia chegado. Então, decidiu olhar para frente e atender ao descompasso de seu coração.

                   Caminhos bifurcados adiante. Por onde deveria começar. Cheio de esperanças e dúvidas adormeceu naquela noite. 

                    Era o amanhecer, caminhava por entre a relva ainda molhada. Logo em sua frente, uma casa, tudo nela tinha a coloração sépia, contrastando com o verde floresta daquela miragem. Um senhor de cabelos grisalhos e barba longa estava sentado à entrada. Ao se aproximar, esse senhor rompeu o silêncio. Mandou que chegasse, já o esperava. “Então você busca o fio condutor para ser um contador de histórias? Vou-lhe adiantando, não tenho essa resposta, essa resposta está em você. Não escreva para agradar as pessoas, escreva para derrubar mitos, tabus, preconceitos, inclusive os seus. Seja um provocador. Lembre-se, enquanto o medo for maior que a vontade de fazer, continuará vagando infinitamente nessa trilha. E agora, siga”, finalizou. 

                     Retomou a trilha e seguiu em frente. Guardou cada palavra do grande mestre. Precisava manter o controle, mas seu coração começou a pulsar mais forte. Logo adiante, como se a casa fosse uma réplica e estivesse andando em círculos, lá estava o senhor de barbas longas. “Busque a essência para fugir do vazio, da superficialidade. Nada que importa está ao alcance dos olhos, tente olhar com o coração”. Parou por um instante, como a dar tempo para que o aprendiz meditasse sobre as palavras que foram largadas ao vento. “Olhe para o céu numa noite de lua cheia”, continuou. “O brilho e o tamanho da lua fazem supor que ela é a gigante do firmamento. No entanto, é centena de vezes menor do que a estrela mais próxima. Tudo depende da perspectiva, do ponto de vista daquele que vê. É preciso desenvolver a capacidade de transportar-se mentalmente para outro lugar. Poderá ter surpresas e encontrará outras verdades. Não somente contará histórias, mas viverá outras vidas”. Fez agora uma longa pausa, entreolharam-se por um instante. “Siga em frente”, disse, se retirando. 

                      Enquanto prosseguia na trilha, decifrava a metáfora do segundo mestre. Uma suave luz no horizonte já começava a surgir. Um possível sinal a dizer que era capaz. Já não foi mais surpresa quando viu uma casa muito semelhante às outras. “Para atingir os homens é preciso observar os pássaros. Escreva com a leveza de seu voar. Não espere ficar pronto. Pronto está aquele que abdicou de aprender”. Isso foi tudo o que o terceiro mestre falou. 

                       Seus olhos se abriram, uma pequena fenda em sua janela deixava ver que o dia havia amanhecido. Tomou um lápis e começou: “Era uma vez um jovem que queria ser escritor...”



terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Não é uma colônia de férias

                 








            Os dados da criação não foram favoráveis à formação de seu filho. Um menino especial. Especial para a mãe, mas especial também em sua constituição. Pouco importa se ele não tem a desenvoltura de outros jovens. Se o amor fosse mensurável, o amor daquela mãe seria maior que o mundo.

Precisava interná-lo naquele hospital. Tinha que ser razoável, prática, racional. Seu coração precisava endurecer um pouco, para não se arrepender depois. Leon não tinha a menor ideia do que se passava. Para ele, a viagem era para levá-lo a uma colônia de férias. Sua mãe, no entanto, sabia muito bem que seu filho demandava urgentes cuidados.

Já não tinha mais o controle da situação. Surtos de violência eram cada vez mais frequentes. Sem contar com o cheiro de drogas que chegava perigosamente cada vez mais perto.

A decisão já tomada. O carro desliza na rodovia. Ainda assim, por vezes, vacilava. Gostaria de saber se essa era a melhor solução. Em meio às suas duvidas, Leon cochilou um pouco. Ao longe, a tênue visão dos prédios a fazia ver que a cidade se aproximava.

Seu olhar acariciou o rosto adormecido de Leon. Sabia, agora, que tinha sido a escolhida para cuidar daquela vida. Não queria mais reclamar, queria apenas acertar, tomar a decisão correta.

Antes que o portão de ferro separasse mãe e filho, Leon, ainda sem entender o que se passava, pediu um abraço.

Ao cruzar o corredor, uma frase lhe chamou a atenção: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Carl Jung.

Duas quadras dali, o primeiro semáforo,  e Leon, lá atrás, ja deveria estar sabendo que aquilo não era uma colônia de férias.

Ninguém escreve ao coveiro




               

                  




                   Quem é que define quem será o que nessa vida? Alguém precisa enterrar os mortos. José era o coveiro, era dele esse encargo.

Naquela cidade todos o conheciam. Também muitos escrevem cartas, mas ninguém escreve ao José. Ele é o coveiro, por que alguém escreveria para ele?

Lançou a última pá de terra daquele dia. Cruzou o portão que separa o cemitério da grande avenida, e andou até o ponto de ônibus. Minutos depois, abria a porta de sua casa, quando, então, teve um sobressalto. Havia no chão um envelope, era uma carta.

Observou que não havia remetente. Largou-a no canto da mesa. José era um cara metódico. Leria na sexta-feira, quando retornasse da festa de aniversário de seu amigo. Metódico que é, não deixaria uma carta inesperada atrapalhar seus planos.

Era apenas quarta-feira. José, com seu jeito taciturno, tocava seu trabalho. Um funeral não é uma festa, ele tinha se acostumado a manter a feição casmurra.

Nenhum dia é tão distante que logo não chegue. E a sexta-feira chegou. José foi à festa, nada mudaria seus planos, afinal, ele é um homem metódico. Por volta das 10 horas da noite, a festa acabou. Justamente naquele dia, resolveu entrar numa balada, que não estava em seus planos.

Pouco passava da meia-noite, olhou à direita, mas não olhou à esquerda, e se projetou pela rua. Um cantar de pneus, seguido de um grito.

Uma vizinha, entre as pessoas que velavam seu corpo, notou que havia um envelope ainda lacrado. “Não seria melhor alguém abrir”, disse. Foi o que fizeram. Nele estava escrito:

“Sexta-feira volte para casa antes da meia-noite”. A morte.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Converse com estranhos

                
Esqueceu as regras de segurança na prisão de seu passado. Naquele dia, um germe havia invadido seu corpo: o germe da liberdade. Atendeu ao pedido de carona do pedestre solitário. Não era bem isso que havia aprendido. Resolveu pôr em prática seu grito, mas para isso sabia que deveria quebrar certas regras. A vida é um risco. As pessoas não conversam com estranhos, embora todos sejam estranhos no meio da multidão. A humanidade está enclausurada. Estava decidido pagar o preço e correr esse risco. No instante em que o efeito do crepúsculo anunciava o fim de mais uma tarde daquele verão, fez sua escolha.

Aparou alguns galhos secos, virou a terra, cumpria alegremente seu ofício de jardineiro.  Sentou naquele banco ainda molhado de orvalho, só agora o sol começa a apontar no horizonte, arranjando um pequeno espaço por entre as nuvens para projetar toda sua intensidade. Hemingway tinha razão, “o sol também se levanta”. Abriu aleatoriamente o livro fictício de memórias de sua vida, e leu algumas páginas.

Jó era um sujeito cético, mas um cético controverso. Às vezes perguntava aos deuses para onde caminha o mundo; às vezes se convencia que tudo se resolve aqui, do outro lado do paraíso. A realidade logo o fazia lembrar que era um jardineiro, não um filósofo.

Câmaras de segurança, cerca elétrica, leitor de íris para acesso, toda parafernália para ficar do outro lado do muro. Nunca ninguém está seguro, mas o que se busca é a sensação de segurança, embora uma falsa sensação. Jó, então, começou a folhear o seu livro.

Limpou as ferramentas, carregou-as até o jipe. Estava feito; dia ganho. Era hora de voltar para casa. Movido por uma sensação estranha, olhou para trás, a casa estava bem protegida, parecia uma fortaleza, ao menos era o que seus proprietários supunham. Em seu interior, no entanto, reinava a insegurança.

Sua casa ficava num bairro retirado da periferia, sem muros, na rua Alameda da Liberdade. Chegou em casa e conversou com as plantas, como de costume. Deu atenção às flores de seu jardim. Regou, podou, demorou-se nesses afazeres, para ele, prazeres.

Outro dia leu no jornal, a casa que parecia uma fortaleza fora atingida por destroços de um asteróide, ninguém sobreviveu, nem as pessoas, nem as flores. Falsa sensação de segurança.

Deixou a Alameda para mais um dia de trabalho, dirigia com cuidado, um transeunte acenou pedindo carona. Logo trocavam ideias sobre coisas da vida. Jó conversava animadamente com o carona. O estranho falou, falou, mas estranhou estar confidenciando sua vida para um estranho. 

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Quem cuidará das flores?











               O soluço sufocado de quem fica,  o  aperto  no  coração  de  quem  parte.  Chegadas e partidas. Chegará o dia em que a separação será inevitável. Quem cuidará dessa flor, da que vai, da que fica?

Quando a mãe deixa a criança no colégio, em seu primeiro dia, aquele abraço de “até mais” que não quer acabar. Depois da festa pela aprovação no vestibular, chega o dia de arrumar as malas e enfrentar sozinha um novo mundo. A felicidade agora toma um tom de ansiedade e preocupação. Para a filha, ansiedade; para a mãe, preocupação. Não há remédio, não tem volta, a vida precisa seguir seu rumo. Quem cuidará dessa flor?

A vida é um eterno se despedir. A moça que casa e leva os sonhos, mas deixa um vazio. Um vazio querido, um vazio esperado. As flores que ficam, choram, ora de saudade, ora de felicidade pela flor que partiu.

Partidas injustas, antes do tempo, definitivas. Quem cuidará dessa flor? E aos que ficam, não haverá consolo. Ninguém saberá dizer por que foi assim.

Nenhuma flor dura para sempre, novos brotos tomam o lugar de pétalas que murcham e caem. Esse é o ciclo natural da vida.

Há um quê de delicadeza nos olhos das pessoas que cultivam flores. Um certo olhar, um delicado olhar, pode-se dizer assim. Para desabrochar, há que ser plantada, regada, cuidada. Há um pouco de poesia em toda pessoa que cultiva alecrim. Há uma rima, há um verso em cada cor, em cada flor. A planta está ali, mas nem todos conseguem ver, só os olhos acurados de quem ama pode ver a beleza em cada detalhe. E se ela se ausentar, quem cuidará das flores?

Quem cuidará das flores? Talvez o tempo. Quem sabe o mundo. E você, o que acha?



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Nazário, o artista












Todas as manhãs se perguntava se tinha escolhido o caminho certo. Enquanto isso, tratava de ir tocando a vida do jeito que sabia. Naquele dia, mais do que nunca, os questionamentos sobre sua profissão tomaram conta de seus pensamentos. A vida de caminhoneiro, decididamente, não lhe agradava, embora para muitos satisfizesse plenamente. Estava certo que não era seu caso.

Diminuiu a velocidade, aquele trecho era muito perigoso, já tinha feito várias vítimas. Quando venceu a curva mais braba, avistou um acidente. O motorista estava preso às ferragens, ainda respirava. Prestou socorro, chamou os bombeiros, fez o que estava a seu alcance. Horas depois, deixou o local com uma certeza: iria ganhar a vida de outra maneira.

Mechas de cabelos rodopiando no ar. Em poucos minutos, a cabeleira irregular estava toda espalhada ao redor da cadeira. Um novo corte, um novo visual, era o trabalho de um artista - o barbeiro. Então, o menino pagou e saiu. “Sua vez, senhor”. Teve que se desculpar, estava de passagem, entrou para observar o  trabalho do profissional. “Está aí um bom ofício”, pensou.

Impossível esquecer aquele dia. Entrou no camelódromo, foi até a barraca 36, ali comprou sua primeira maquininha de cortar cabelos. Lembrava perfeitamente do conselho daquele profissional: “se quiser aprender, você só tem uma coisa a fazer, cortar cabelos, muitos cabelos”.

Por alguns meses, pegava sua bicicleta, jogava a mochila às costas, partia para o trabalho: um dia no hospital, outro dia na escola, depois na penitenciária, em todos os lugares cortava cabelo sem nada cobrar.

De todas essas pessoas, sempre lhe vem em mente uma em especial. Na verdade, foi seu primeiro corte, era um mendigo. Depois dele, muitas outras vezes trabalharia gratuitamente. Um dia, enquanto trabalhava, as palavras de um desconhecido, que o observava, levariam seu projeto para a etapa seguinte. “Você já é um ótimo barbeiro, pode abrir seu negócio”.

Desde então, Nazário, o barbeiro, sempre procurou se aperfeiçoar. Agora tinha certeza que escolhera o caminho certo. Constituiu família e teve dois filhos. Ensinou-lhes a arte. Cresceram, e escolheram a profissão do pai para ganhar a vida.

Atualmente, Nazário ministra cursos de corte de cabelo, periodicamente, mas continua trabalhando em sua barbearia. É um homem que encontrou a profissão que lhe dá prazer. Se a felicidade tem um segredo, esse é o segredo de Nazário.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O sorriso não envelhece











Alguns povos reverenciam seus idosos. Como se as pessoas longevas tivessem acumulado sabedoria, a sabedoria de um saber viver.  Ouvir uma pessoa assim é ver com os olhos dela as marcas do passado, as histórias vividas em outros tempos. É tudo uma questão cultural,  mas a maioria das pessoas assim não tem essa sorte.

Eram nítidas as rugas, a passagem do tempo, naquele rosto. Uma perna avança lentamente, encontra o solo para se firmar, a outra se move suave e indecisa, um demorado passo foi dado. Há o tempo certo para tudo: o tempo de correr e nadar, o tempo de engatinhar, o tempo de viver a vida que passou.

Mais alguns passos e um quarto de hora, e Maria estava posicionada na área frontal de sua casa. Poderia ver dali os carros, os ciclistas, a vida que andava lá fora. Poderia ver dali a vida que tinha ficado para trás, quando mirava um ponto qualquer e vagava para dentro do mundo que um dia viveu.

As pessoas fogem da solidão, enquanto jovens. Há um tempo para tudo. Mais tarde, deverão aprender a viver só, não por vontade própria, mas por necessidade. Maria tinha aprendido a conviver com a solidão - a sabedoria de um saber viver. Ninguém mais tinha paciência para ouvi-la, eram sempre as mesmas e velhas histórias. Quem sabe, por isso, Maria pouco falava, tinha sacado o barato, tá ligado!

Num daqueles domingos ensolarados, os netos chegaram trazendo o frescor da vida. Tinha chegado o tempo de aprenderem a pedalar. E o gramado de sua casa era um convite explícito para brincarem. Certo que caíram e levantaram e brincaram a tarde toda.

Postada ali em seu banco, olhava os netos, a vida exuberante, as risadas, os esfolados, as brigas, o cair e levantar. Então Maria sorriu. E o sorriso de Maria era o mesmo sorriso de sempre. O sorriso não tem as rugas do tempo, o sorriso não envelhece.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Fios de esperança




Limpou as lágrimas com a palma da mão. Aquilo tudo estava tão distante do que sonhara para si e para sua filha.

Quando a família, a sociedade, as entidades assistenciais foram vencidas, o último fio de esperança recai sobre a clínica de desintoxicação de alta complexidade.

Estar ali é estar no inferno, mas há ainda uma réstia de esperanças. Por isso, deixar a filha ali é algo que jamais imaginou. Agora, não se sabe como, estava nessa clínica toda sua vida, tudo que realmente importava

Onde havia errado, se perguntava pela milésima vez. O amor é uma cilada. Por amar demais, nunca conseguiu dizer não. Talvez tenha descoberto isso um pouco tarde. Em que momento devia ter dito o seu primeiro não? Tinha acabado de ouvir uma mulher que se culpava pelo excesso de nãos. Quando deveria ter dito sim, em vez de não? Cada um é diferente em suas desgraças, só a felicidade é sempre igual. Por isso, muitas são as tristezas, mas uma só a felicidade.

Conhecia muito bem sua filha, como conhecia o poder da dependência química. Teve oportunidade de compreender isso em muitas recaídas. Recaídas que fazem o fundo do poço parecer cada vez mais fundo. Limpou novamente suas lágrimas. Não importava mais onde havia errado, queria saber apenas onde poderia encontrar mais forças.

Sentada ali na recepção, sua filha debruçada ao seu colo, aguardava sua vez. Quem sabe agora tudo poderia ser diferente. “A ficha, preencha a ficha para a internação, minha senhora”.

Precisa acreditar que ainda é possível.  Queria ter pelo menos um fio de esperança.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Os sonhos de Tereza













                  Há momentos em que o real se funde com a ilusão, nesses fugazes instantes, tem-se a impressão que o mundo dos sonhos acabou de ser construído. Seria esse quadro, talvez, uma possível leitura dos olhos de Tereza, naquela tarde cinzenta de  janeiro.

A poucos metros de sua casa, desliza mansamente o Rio Canoas. Dezenas, como a sua, amontoadas  ao longo do rio. Não é exatamente um quadro ecologicamente correto. No entanto, as pessoas que ali estão precisam morar em algum lugar, algum lugar para chamar de seu, nem que seja à beira do rio.

Antes de banhar os alicerces da casa de Tereza, o Canoas brota no Campo dos Padres - uma linda cadeia de montanhas que, como numa ilusão de ótica, parece tocar as nuvens -, nas cercanias de Urubici com  Bom Retiro, percorre um longo caminho, até se encontrar com o Rio Pelotas e formarem o Rio Uruguai, nesse trajeto, muitas são as populações ribeirinhas, muitas são as Terezas.

O local onde mora fica aos pés de uma cascalheira desativada, daí o nome Bairro Cascalheira. A cada eleição municipal, os candidatos lá comparecem e repetem as velhas promessas, depois... somem, para só retornar na próxima eleição. Nenhuma novidade. Para quem passa ao largo do bairro, uma densa plantação de eucaliptos encobre grande parte da encosta habitada. Os disfarces da cidade, com frequência, não são suficientes.

Casou jovem, teve duas filhas. Enquanto as forças permitiram, trabalhou como diarista em hortas e pomares, serviço sazonal, melhor dizendo, subemprego temporário. Direitos trabalhistas? Nem pensar. O modelo econômico da região não é precisamente um modelo favorável à mobilidade social. À noitezinha, chegava cansada, atendia suas filhas, entregava ao marido a paga do dia, o qual também vivia de atividades  temporárias.  Assim, iam levando modestamente a vida.

Um fato mudaria sua vida para sempre. Tinha então 27 anos, prestes a completar 9 anos de casada, dois amores, Yasmin e Gabriele, cinco e sete anos de idade.

A labuta pesada, durante o dia, não diminuía a dedicação que sempre dispensou às filhas e ao marido. Sonhava dar melhores condições à sua família, sabia, entretanto, que seus escassos recursos estavam muito aquém de seus desejos. Sonhava acordada, em casa, na lavoura, ora colhendo ameixas, ora colhendo tomates, onde quer que estivesse, sonhava. Imaginava o dia em que as ruas esburacadas e mal cuidadas do bairro dessem lugar a calçadas decentes; podia ver perfeitamente sua nova casinha, pintada em cores alegres, as janelas em tom diferente, mas essas cores mudavam a cada sonho, mas sempre vivas, como tinha visto na rodovia dos santos, no trajeto Urubici-vila São Pedro; via suas meninas arrumadinhas, com duplas trancinhas, andarem de bicicleta no verde gramado de sua casa. Gostava especialmente de beijá-las no momento em que, com a mochilinha às costas, dirigiam-se ao colégio. A penosa realidade contrastava com seus devaneios. Quem sabe não fossem esses sonhos que davam à Tereza aquela energia para continuar lutando, quem sabe.

Algumas dores, nenhum gemido, levaram-na a realizar uma bateria de exames. Semanas depois, o diagnóstico: um câncer avançado lhe dava poucos meses de vida. Logo se viu sem condições de trabalhar.

Era uma tarde amena de janeiro. Primeiro, a poeira empurrada pelo vento; depois, uma pancada forte de chuva; logo em seguida, uma fina garoa se prolongaria por diversas horas. Já havia caído a noite quando o seu marido chegou. Foi seco e lacônico: “Estou indo embora, fique com as crianças”.

Poucos dias se passaram, debilitada, raros eram os momentos de lucidez, então, quando o mundo lá fora não era mais real, viu as belas cores de sua nova casinha, o verde gramado de seu pátio, as ruas calçadas, com canteiros floridos na parte central, viu suas filhas lendo historinhas... Esboçou um leve sorriso, ainda teve tempo de dizer: “Nunca deixem de sonhar”. O tempo de Tereza havia chegado ao fim.